A LIVRARIA DE JOSÉ AFONSO BOTELHO ANDRADE
José Afonso Botelho Andrade da Câmara e Castro (1828-1887) não deixou vasta obra publicada[1], mas a sua biblioteca particular – que, segundo alguma imprensa da época, contava mais de 10.000 títulos[2] – coloca-o a par de outros eruditos e colecionadores da sua geração, como era o caso dos irmãos José e Ernesto do Canto.
Botelho Andrade morreu repentinamente em 1887, na sua residência de Ponta Delgada, sita à rua do Carvão, sem que lhe tivessem sido ministrados os últimos sacramentos[3], mas antes disso, em 1879, já tinha acautelado a sua vontade num testamento[4] em que, excetuando os fatos e fazendas deixadas ao casal de criados, todas as outras disposições dizem respeito à sua livraria, o que testemunha de forma eloquente o valor que lhe atribuía. Grande admirador de literatura dramática, que formava parte importante do seu espólio[5], via-se decerto retratado naquela passagem de Shakespeare – my Library was dukedom large enough, eloquente fala de Próspero, na peça The Tempest.
Apesar do testamento não dar qualquer indicação, mesmo que sumária, acerca do recheio da livraria, há algumas disposições bastante precisas que se destacam na leitura do documento:
“(…) quer que sem limitação de tempo se forneçam da sua livraria todos os livros que forem requisitados pelo Doutor Caetano de Andrade Albuquerque, Jaime Guilherme Tavares, Francisco de Arruda Furtado, Evaristo Soares de Meneses e David Cohen;
quer que da sua livraria se dê ao Doutor Caetano de Andrade Albuquerque os dois volumes de L’Autographe[6]; não se atrevendo a oferecer-lhe a obra que ele escolhesse, porque sabe que o seu desinteresse o faria pedir para memória um insignificante folheto; (…)”
A estima aqui revelada por Caetano de Andrade Albuquerque (1844-1900) que, à época em que o testamento foi lavrado, era a figura proeminente do Partido Progressista em S. Miguel[7], deixa adivinhar as afinidades ideológicas de Botelho Andrade – forjado no socialismo romântico de António Feliciano de Castilho[8] – com este seu conterrâneo e primo mais jovem, o qual apresentou em 1870, na Universidade de Coimbra, uma dissertação subordinada ao tema Direitos dos Operários.[9]
Embora a biografia de José Afonso Botelho Andrade esteja por fazer, os testemunhos de reconhecimento que lhe foram prestados por ocasião da morte[10], permitem cerzir os diferentes retalhos da sua história de vida. Nascido em Ponta Delgada – filho do advogado José Afonso Botelho, mais tarde juiz em Angra do Heroísmo, e de sua 1.ª mulher, D. Jacinta Flora de Andrade e Camara –, após completar o curso de Direito em Coimbra (1849-1854), onde ergueu, com Filipe do Quental, a Sociedade de Instrução dos Operários[11], casou-se em Angra do Heroísmo com Eufémia Borges Leal Côrte-Real (19 maio 1856)[12], fixando depois residência durante largos anos na Horta, cidade em que desempenhou as funções de Tabelião (1857-1866)[13], ao mesmo tempo que assegurava com Miguel Street de Arriaga a redação do semanário O Fayalense[14].
Folheando as páginas deste periódico no seu primeiro ano de publicação, descobrimos parte da sua produção literária que, tal como a de muitos outros, aí ficou enterrada na vala comum da imprensa oitocentista. Em 1867 transfere-se para Ponta Delgada[15] e o regresso à cidade natal é coroado pelo nascimento do filho, Jaime (19 mar. 1870)[16], a quem lega a sua livraria no testamento, com a recomendação desta nunca ser desmembrada:
“(…) quer que a sua livraria seja dada em legítima a seu filho Jaime, e quando porventura o valor desta exceda o dos mais bens do casal, espera que sua consorte (…) faça doação a este da parte da mesma livraria que porventura lhe caiba em meação.”[17]
Bibliógrafo e erudito respeitado, como testemunha a troca de correspondência com Ernesto do Canto[18] e Teófilo Braga, reuniu de forma criteriosa as publicações que foram dadas à estampa no âmbito das Comemorações Camonianas em 1880[19]. Dois anos mais tarde, quando foram celebradas as Comemorações Pombalinas de 1882, o seu velho apostolado em prol da instrução popular manifesta-se de novo e surge como patrono do Gabinete de Leitura Marquês de Pombal, formado em S. Roque do Pico[20].
Francisco Maria Supico, o decano da imprensa local, sumariou em breves palavras os traços marcantes do carácter do “Dr. Afonso”, como então era conhecido:
“(…) Jamais o fascinou a ambição; e nem se impunha, nem se inculcava. Evitava até o trato fora do círculo de modestas relações em que vivia. Tinha habilitações e faculdades para se distinguir em qualquer carreira das que levam a elevadas posições, e dava-se por satisfeito com um ofício secundário dos de justiça, tendo tido na universidade por condiscípulos e amigos bastantes dos nossos contemporâneos ilustres, desempenhando cargos dos mais elevados do Estado[21], que lhe poderiam ser auxiliares do seu adiantamento na vida pública.”[22]
Da sua reputada livraria chegou até nós o núcleo da coleção camoniana, composto sobretudo por periódicos, brochuras e folhetos, acondicionados nas caixas originais, o qual foi adquirido em 1992 pela Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada aos descendentes de Botelho Andrade[23].
[1] Vd. Ernesto do Canto. Bibliotheca Açoriana. Vol. I. Ponta Delgada: Typ. do Archivo dos Açores, 1890, p. 243.
[2] Vd. O Conimbricense, n.º 4183 (27 set. 1887).
[3] BPARPD. PRQ. Ponta Delgada. Paróquia de São José. Registo de óbitos, lv. de 1887, fl.s 24-24v.º, n.º 110.
[4] BPARPD. CNPDL – 5º Ofício, Tab. Anacleto A. Machado Nogueira, lv. de notas n.º 54, fl.s 23-24 – NOT 3358 e BPARPD. ACPDL. Registo de testamentos, lv n.º 62, n.º 2576, fl.s 14v.º-15v.º – ACPDL 857.
[5] “Do Teatro português conhecido raros espécimes lhe faltarão”. Cf. A Persuasão, n.º 1339 (14 set. 1887), p. 2.
[6] Periódico francês (1864-1865) dirigido por Hyppollte de Villemessant, com esmerada colaboração artística, cuja coleção completa é hoje uma raridade bibliográfica muito disputada pelos colecionadores.
[7] Veja-se a nota biográfica escrita para o n.º 1 da Galeria do Pist! (Ponta Delgada: Tip. Recreativa, 1886), assinada pelo Dr. Gil Demónio (Francisco Maria Supico), que acompanha um retrato de Caetano de Andrade desenhado por João Cabral.
[8] Vd. Alfredo Margarido, “Quelques mythes agriculturistes et instructionnistes dans la pensée et la pratique portugaises (particulièrement chez António F. de Castilho) pendant la première moitié du XIX siècle”. In: Utopie et Socialisme au Portugal au XIX siècle. 1982, Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 535-585.
[9] Cf. Direitos dos Operários. Dissertação inaugural para o Acto de Conclusões Magnas de Caetano d’Andrade Albuquerque. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1870.
[10] Nesse próprio dia o Novo Diário dos Açores (n.º 1231, 9 set. 1887) destaca em primeira página a notícia do óbito, sublinhando a sua dedicação aos livros – “A prova de quanto era amigo de animar o desenvolvimento da instrução, aí a temos no Grémio Literário que ele criou e enriqueceu, tornando acessível aos sócios a excelente biblioteca que possuía, e era produto de quase todas as suas economias”.
[11] Esta associação, a primeira do género a formar-se em Coimbra, estava ligada à Loja maçónica Pátria e Caridade (1852), dirigida por Filipe do Quental, e também dela fizeram parte Botelho Andrade e Joaquim Martins de Carvalho, redator de O Conimbricense, que, após a morte do condiscípulo açoriano, publica nas páginas desse semanário um testemunho interessante sobre a sua passagem pela cidade universitária (cf. O Conimbricense, n.º 4183. 27 set. 1887).
[12] BPARLSR. PRQ. Angra do Heroísmo. Paróquia da Sé. Registo de casamentos, lv. n.º 17 (1849-1860), fl.s 78.
[13] BPARJJG. NOT. Cartório Notarial – 4º Ofício (cf. https://arquivos.azores.gov.pt/details?id=1002641).
[14] Trata-se do segundo título periódico a ser publicado na cidade da Horta (o primeiro foi O Incentivo, redigido por João José da Graça). Em agosto de 1858, Botelho Andrade torna público que “tendo de entregar-me todo ao bom serviço do meu ofício não me é possível continuar a ter parte na redação do Fayalense, nem tão pouco na sua colaboração” (cf. O Fayalense, ano 2.º, n.º 1, p.8). Para mais informações sobre este título, vd. Archivo dos Açores (vol. X, 1887, pp. 45-46).
[15] Onde foi tabelião do Cartório do 4.º ofício, de dezembro de 1867 a outubro de 1882, e, depois, do 1.º ofício, de novembro de 1882 até à extinção deste, em junho de 1886 (cf. https://arquivos.azores.gov.pt/details?id=1099722 e https://arquivos.azores.gov.pt/details?id=1099190).
[16] BPARPD. PRQ. Ponta Delgada. Paróquia de São José. Registo de batismos, lv. de 1870, fl.s 33v.º-34, n.º 98. Ainda na Horta, o casal tivera uma filha, Maria, que falecera criança (1858-1866).
[17] Vd. nota n.º 4.
[18] Vem ao caso transcrever o excerto da carta dirigida a Ernesto do Canto na qual é feita referência a um título em falta na sua biblioteca particular (lacuna essa que mereceu a atenção de Augusto Cabral numa das caricaturas que desenhou de Botelho Andrade. Cf. BPARPD. BA, 68-1):“Meu Ernesto (…) Quando Mariano José Cabral era bibliotecário publicou um jornal que não passou de três números, creio eu – Flores literárias. É em folhetos. Como tu és o homem deles, ser-te-á possível saberes onde eu encontrarei alguns exemplares do nº 3?”. Cf. BPARPD. Livraria Ernesto do Canto. Correspondência, cx. 4, doc. 1249 (carta de 28 abr. 1881).
[19] Botelho Andrade estava muito empenhado, conforme documenta o excerto de uma carta dirigida a Teófilo Braga, em publicar um Livro do centenário camoniano nos Açores: “Aí vai recomendada à sua benevolência a Bibliografia Camoniana respeitante a 1882. (…) Tudo isto está remendado no Livro do centenário, que é uma nova Bibliografia muito mais desenvolvida, e em que se transcreverão as circulares, programas, bilhetes, e principais artigos de açorianos aqui publicados. Tenho porém que lutar com o péssimo meio em que estou colocado a respeito desta publicação: pode dizer-se que não há tipografia nem tipógrafos. Já duas vezes comecei o trabalho e duas vezes o retirei. Resolvi-me ultimamente a mandar comprar um prelo na América e prover-me de tipo em Lisboa. Tudo isto leva tempo. Cf. BPARPD. Arquivo Teófilo Braga, cx. 177, doc. 63 (carta de 26 fev. 1883).
[20] Cf. BPARPD. Arquivo Ernesto do Canto, Vária 3º. Papéis de várias procedências pela maior parte impressos, circulares, ofícios, cartas, etc., doc. 212 – MEC, lv. 22A.
[21] Referência subliminar a José Luciano de Castro (1834-1914), líder nacional do Partido Progressista e Presidente do Conselho de Ministros (1886-1890), que se cruzara com Botelho Andrade em Coimbra, nas fileiras da Loja maçónica Pátria e Caridade (vd. supra, nota 11).
[22] Cf. A Persuasão, n.º 1339 (14 set. 1887), pp. 2-3.
[23] O filho, capitão de Infantaria Jaime d’Andrade, morreu cedo em 1908 (com 38 anos de idade), deixou uma filha e foi a uma neta desta senhora que o acervo foi adquirido, ao tempo da Direção do Prof. Almeida Pavão, em julho de 1992, conforme se refere na p. 10 da Introdução do catálogo da exposição Sínteses afetivas: Teófilo Braga e os centenários, organizada em 2011 (BPARPD. Fundo Geral, AÇORES 9/587).