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Documento do mês

A cumplicidade poética entre Eugénio de Andrade e Natália Correia

 

Eugénio de Andrade (1923-2005) e Natália Correia (1923-1993), cujos centenários de nascimento celebramos este ano, encontram-se nos documentos que vos trazemos – dois manuscritos autógrafos de Eugénio de Andrade[1] –, ambos da década de 1950 , e muito provavelmente apenas com distância de um mês, apesar de o segundo não estar datado. O papel timbrado do primeiro documento confirma a profissão do poeta, que era inspector nos Serviços Médico Sociais do Porto.

Poderemos perguntar, que razão terá levado Natália Correia a enviar as provas do seu livro ao autor de As Mãos e os Frutos (1948)[2] e de Os Amantes Sem Dinheiro (1950)[3]. Poderemos também perguntar de que livro se tratava. Ora, além de amigos, Eugénio de Andrade – que vivera em Lisboa (1932-1950) –, estava muito à frente no seu percurso poético. Entre 1942 e 1954, publicara quatro livros de poesia e os seus poemas, que também constavam de duas antologias, eram aclamados pela crítica: Eduardo Lourenço, Jorge de Sena, Nemésio, entre outros, colocavam-no num patamar de grande inovação e consistência poética. Enquanto isso, Natália, para além de duas narrativas, publicadas na década de quarenta[4], e de Descobri que era Europeia (1951)[5], publicara o primeiro livro de poesia, Rio de Nuvens, em 1947. E, de facto, entre este primeiro título e o segundo livro de poesia, Poemas (1955)[6], existe um grande caminho de maturação literária. Por outro lado, o livro é publicado no Porto, daí também a intervenção do poeta junto do editor: tendo em conta o cerco da P.I.D.E. à vida e à obra da autora, que além de relatórios, depois de a perseguir, violava a correspondência da poeta[7], é natural que fosse mais fácil publicar longe de Lisboa, onde vivia, com a cumplicidade de Eugénio de Andrade. Ora, os documentos, que aqui vos apresentamos, falam exactamente das provas de Poemas, um livro fundamental para a autora açoriana, após o interregno de sete anos que justifica plenamente ter recorrido à maioridade do amigo e poeta, Eugénio de Andrade. O segundo documento, embora não datado, continua o assunto do primeiro – onde se percebe a impaciência de Natália: «terá que ter paciência e aguardar até ao fim do mês»[8]. É muito provável que a segunda carta tenha sido escrita umas quatro semanas após a primeira.

Mas esta data traz-nos também outra curiosidade, que ligaria ainda ambos os poetas, nos anos seguintes: ambos tinham uma ligação muito profunda com as suas mães: ambas morrerão em 1956, iniciando um ciclo de indelével perda que a poesia de ambos potenciará. Na realidade, a cumplicidade e a amizade entre os dois poetas será perene, conforme atesta a dedicatória de Eugénio de Andrade, igualmente incluída neste documento do mês[9]:

«A Natália

– estes quarenta anos de poesia,

quase tantos como os da nossa

amizade,

com desejos de um Bom Natal,

Dezembro 1981

Eugénio»

 

 

Direitos de autor do texto – ÂA / BPARPD

 

[1] Uma carta, datada de Dezembro de 1954, 2 fl.s, sendo que o segundo fólio está em branco (BPARPD. Arquivo Natália Correia, doc. 529), e a outra, não datada, 2 fl.s (BPARPD. Arquivo Natália Correia, doc. 528).

[2] ANDRADE, Eugénio de (1948). As Mãos e os Frutos. Porto: Editorial Império.

[3] ANDRADE, Eugénio de (1950). Os Amantes Sem Dinheiro. Lisboa: Centro Bibliográfico.

[4] CORREIA, Natália (1945). Grandes Aventuras de um Pequeno Herói. Porto: Editorial Astra; CORREIA, Natália (1946). Anoiteceu no Bairro. Lisboa: Casa do Livro.

[5] CORREIA, Natália (1951). Descobri que era Europeia- Impressões duma Viagem à América. Lisboa: Portugália.

[6] CORREIA, Natália (1955). Poemas. Porto: ed. da autora.

[7] A partir de 1958, o Estado Novo, através da P.I.D.E. confiscará oito títulos de Natália Correia.

[8] Carta de Dezembro de 1954 (BPARPD. Arquivo Natália Correia, doc. 529).

[9] ANDRADE, Eugénio (1981). Poesia e Prosa. Com um autógrafo do autor, dedicado a Natália Correia. Porto: Limiar (2.ª ed.).