No ano em que celebramos o centenário do nascimento de Thomas Mann (1875-1955), convidamos os nossos leitores a lerem este autor, sobretudo a obra-prima A Montanha Mágica (EMP 82 (430) -31 MAN/mon), cuja primeira edição começou a ser escrita em 1913, ou seja, um ano antes do eclodir da Primeira Guerra Mundial, tendo o autor interrompido durante o período da guerra – para dedicar-se a Considerações de um Não-Político; Contos. Todavia, logo retomou a redação deste espesso romance, um dos maiores clássicos de sempre, indispensável ao entendimento do pós-revolução industrial, a guerra sangrenta e o papel dos intelectuais e dos criadores, nomeadamente da Literatura. Com a chegada do nazismo ao poder, em 1933, pela mão de Hitler, Thomas Mann exilou-se na Suíça, partindo mais tarde para os Estados Unidos da América, onde foi professor na Universidade de Princeton. Desse tempo, recomendamos a leitura da conferência que fez aos estudantes, corria o ano de 1939, como sabemos, o ano em que teve início a Segunda Guerra Mundial. Ora, naquela conferência, o autor explica toda a concepção dessa catedral da Literatura e do pensamento que é A Montanha Mágica, então concluído no ano da sua primeira edição, em 1924.
Com efeito, esta ficção, abundante em símbolos , consiste numa alegoria do mundo ocidental na época: estando tudo mal na planície – Hamburgo, a cidade natal da personagem central, Hans Castrop -, ele, engenheiro recém-formado, prestes a iniciar a vida profissional – decide adiar esse compromisso e subir a montanha (Os Alpes), símbolo de centro, de ascese, viajando de comboio – à maneira da época -, desde a Holanda até Berghof, em Davos, na Suíça, para visitar o primo, Joaquim Ziemssen, um militar que é um dos utentes do sanatório – um verdadeiro microcosmos da Europa de então, agregando as várias nacionalidades e tipos de interesse. O objectivo seria ficar três semanas, realidade que se vai alterando, e Hans Castorp acaba por ficar sete anos, regressando, no final desse tempo, à planície, donde partira, e incorporando o corpo de soldados:
«Eis aí o nosso amigo, Hans Castorp ! Já de longe o reconhecemos pela barbicha que deixou crescer, enquanto comia à mesa dos “russos ordinários”. Arde, ensopado pela chuva como os outros. Corre, os pés trôpegos, agarrando a espingarda. Vejam, pisou a mão de um camarada caído, a sua bota ferrada afunda essa mão no solo lamacento, crivado de estilhaços. E, todavia, é ele! Como? Ele canta? Cantarola, como se faz sem saber, de si para si, numa excitação surda, vazia de pensamentos, aproveitando a respiração ofegante.»: (Mann, 1958: 748)
E o que acontece durante esses sete anos? E por que é importante ler este clássico da Literatura? Tempo e espaço, o corpo e espírito, o ocidente e o oriente, vida e morte, paz e guerra, progresso e tradição, liberdade e aprisionamento, amor e desamor, são temas fundamentais, amplamente pensados e debatidos pelas personagens centrais, como é o caso dos diálogos riquíssimos estabelecidos entre Hans Castorp e o seu mestre, Settembrini, um dos utentes do sanatório, iluminado e humanista, com elevado sentido estético, profundo conhecedor dos clássicos, fundamental na formação de Hans Castorp. Nesta ficção apaixonante, lemos uma belíssima metáfora, meticulosamente desenvolvida, do estado doentio, inerte, moribundo da humanidade saída da revolução industrial e da guerra. Leia-se, a propósito, a voz de Settembrini:
«A situação mundial perturba-me – suspirou o pedreiro-livre. A Liga Balcânica realizar-se-á, todas as minhas informações o confirmam. A Rússia trabalha fervorosamente nesse sentido, e a lança da combinação dirige-se contra a monarquia austro-húngara, sem a destruição da qual nenhuma parte do programa russo pode se tornar realidade. O senhor compreende os meus escrúpulos? Odeio Viena de todo o coração, como o senhor sabe. Mas será um motivo para que a minha alma dê apoio ao despotismo sármata, que está prestes a lançar a tocha incendiaria contra o nosso nobre continente? Por outro lado, uma colaboração diplomática entre o meu país e a Áustria, ainda que ocasional, ferir-me-ia como uma desonra.» (Mann, 1958: 664)
Uma viagem também aos progressos trazidos pela industrialização, não apenas nas viagens de comboio, mas, a título de exemplo, na emoção que causa o primeiro fonógrafo: «Hans Castorp experimentou aproximadamente uns vinte e cinco discos, servindo-se de certo tipo de agulhas finas que tocavam em surdina, para não molestar ninguém e para não ser ouvido de noite.» (Mann, 1958: 670-671)
O tempo enquanto motor de transformação constante, o vazio, a melancolia, a doença como consequência, a exaltação, a alegria, a felicidade, a solidão, a natureza campestre e a contemplação, a música e o prazer de senti-la, são temas desenvolvidos pelo autor que cria um narrador dialogante, que antecipa os factos ao leitor e que o interroga. A ascensão de Hans Castorp ao conhecimento, à ciência – «De noite, Hans Castorp contemplava os astros» (Mann, 1958: 388) -, à música, ao amor, aos clássicos, são temas centrais neste que é um Bildungaroman, um romance de formação, que sendo arte, é também uma sátira a um determinado contexto epocal e literário, onde, por exemplo, o próprio conceito de herói é parodiado na personagem de Hans Cartop que, longe de ser o herói clássico, é uma figura amorfa, simples, que apenas o tempo passado na «montanha mágica» tentará transformar:
«Que é o tempo? Um mistério: é imaterial e – omnipotente. É uma condição do mundo exterior; é um movimento ligado e mesclado à existência dos corpos no espaço e com a sua marcha. Mas, deixaria de haver tempo, se não houvesse movimento? Não haveria movimento sem o tempo? É inútil perguntar. É o tempo uma função do espaço? Ou vice-versa? Ou são ambos idênticos? Não adianta prosseguir perguntando. O tempo é ativo, tem caráter verbal, “traz consigo”. Que é que traz consigo? A transformação. O Agora não é o Então; o Aqui é diferente do Ali; pois entre ambos se intercala o movimento. Mas, visto ser circular e fechar-se sobre si mesmo, o movimento pelo qual se mede o tempo, trata-se de um movimento e de uma transformação que quase poderiam ser qualificados de repouso e de imobilidade: o Então repete-se constantemente no Agora, e o Ali repete-se no Aqui. Como, por outro lado, nem sequer os mais desesperados esforços nos podem fazer imaginar um tempo finito ou um espaço limitado, decidimo-nos a configurar eternos e infinitos o tempo e o espaço, evidentemente na esperança de obter dessa forma um resultado, senão perfeito, ao menos melhor. Ora, estabelecer o postulado do eterno e do infinito não significa, porventura, o aniquilamento lógico e matemático de tudo quanto é limitado e finito, e a sua redução aproximada a zero? É possível uma sucessão no eterno ou uma justaposição no infinito? São compatíveis com as hipóteses de emergência do eterno e do infinito, conceitos como os da distância, do movimento, da transformação, ou a simples existência de corpos limitados no Universo? Quantas perguntas improfícuas! Hans Castorp ventilava intimamente esses problemas e outros semelhantes. Desde que chegara ali em cima seu cérebro sempre se mostrara disposto a esse tipo de indiscrições e sutilezas» (Mann, 1958: 362).
Texto: AA/BPARPDL
Disponível para empréstimo domiciliário
MANN, Thomas – A montanha mágica. Lisboa: Livros do Brasil, [1978].
BPARPD EMP 82(430)-31 MAN/mon