Neste mês de Agosto, o nosso destaque é dado à obra poética da mariense Madalena Férin (1929-2010), violinos ocultos sob a relva (AÇORES 8/2409), uma iniciativa do Instituto Açoriano de Cultura, que reúne os oito livros de poesia da autora. Filha do poeta mariense Armando Monteiro, Madalena Férin nasceu em Vila Franca doCampo, uma vez que o avô, o médico e historiador Manuel Monteiro Velho Arruda, trabalhava no hospital daquela vila. Logo após o nascimento, a futura poetisa partiu com os pais para Santa Maria, onde a família residia. Já menina, e porque a escola primária era deficitária naquela ilha, haveria de estudar em casa, onde receberia aulas particulares. Os quarenta e três anos que viverá na ilha mais oriental dos Açores ficarão assinalados pelos serões que animava, regados a poesia, pelo casamento, pelo nascimento dos quatro filhos, pela relação endógena e ambivalente com a ilha natal e pela publicação do primeiro livro, Poemas (1957).
O ciclo poético de Madalena Férin (1957-2003) assenta num universo simbólico-estilístico ao (re)encontro da totalidade arquetípica. Deste modo, não estamos perante um itinerário invocador do metafísico, antes, ávido da unidade cósmica- «(…) /sei que pertenço ao corpo universal/à ondulação/ao frémito dos astros». Apenas assim, o sujeito poético, «a mulher-pássaro»/…, consumirá a plenitude do vôo alquímico , onde a alma, então purificada[1] – «na alquimia de sermos lírios puros» – existirá- «…/una…/inteira…/…». Esse itinerário poético parte da ilha-natal –prisão -«uma ilha já não é de muros de água/para livrar-me dela tenho asas/livrei-me da ilha/no meu corpo/mas tenho-a enquistada na minha alma»-, viabilizando a emersão da outra ilha-«…/… a ilha /prometida…», símbolo da Tellus Mater, à qual ascenderá através de um vôo alquímico; parte , também da «cidade vegetal», não com «muros de água», mas com um «portão por abrir» – «…/Cidade/onde / os cegos estão colados às esquinas/…/Cidade/ acordeão da noite sem aurora nunca/…»; parte, ainda, de um mundo em agonia – «…coloquei o meu arco/sobre as nuvens/e senti o odor do/holocausto/…», «…/…mundo/ onde me prendo/e cismo/…». Este itinerário, este vôo libertador, suportado num universo simbólico ascensional- «escada», «alado», «deuses», «anjos», «asas» -, parte dessa realidade antitética e distópica, ao encontro do Absoluto anterior – «a essência do olhar/é anterior ao tempo/…» -, onde os opostos fundir-se-ão- «…a água e o fogo/misturam-se na taça/…», «Abres o teu futuro/no passado;/…», «…/ e a noite foi/separada da / manhã/…», «…misturando o profano/no divino/…». Naturalmente que estamos perante o vôo onírico bachelardiano, pautado pela ascensão e pela queda humana – «onde nada tem nome/transparente e alada/estranha subo e desço/por uma oculta escada» -, na procura incessante dos «violinos ocultos sob a relva» ou uma defesa da ambivalência do discurso poético, que ora mostra ora oculta, convidando o crítico a fazer o mesmo caminho de descodificação do inconsciente colectivo, através dos símbolos, dos arquétipos e dos mitos. É assim que , neste vôo, são invocadas aquelas que , na mitologia grega, lutaram pela sua libertação- Andrómeda, Penélope, Andrómaca ou Afrodite -, ao mesmo tempo que se sente a cumplicidade de algum universo vocabular bíblico, como «leite», «mel», «vinho», «linho», «candelabro», «fogo», «dilúvio»,«Moabe», além de expressões, como «Nus no /Jardim/…» , os «Sete Selos», «a maçã que a mulher/não mordeu/…».Há toda uma convocatória, que atravessa mitos, crenças, lendas, mistérios, sentimentos, para agregar deusas e deuses, «fadas», «sereias», «atlantes», «o Amor» , o «caldeirão» do Santo Graal, «Jerusalém» , a «Grande-Mãe», no vôo incansável e definito do ser para o não ser, do tudo para o nada, da ordem para o caos anterior , para o indecifrável: « no princípio era o caos/…/…dormimos no abismo/em águas que flutuam/onde tudo era igual/ indistinto do nada/…» Mas, neste itinerário alado, são também convocadas as mulheres, todas as mulheres ostracizadas- «…/excluída a mulher/…», «as mulheres de Lamec/que ouvem a sua voz/a água e o fogo/ misturam-se na taça/ desvendámos o sexto/candelabro/…», «…/uma mulher de fogo/com a lua de escabelo/gritando as dores de parto/debaixo do vestido/trazia a grande espada/…/…/abriu-nos o caminho». E, finalmente, a arte poética é questionada: apela-se à função inaugural, primeira, da palavra no poera-a palavra pura, não contaminada: «Poetas, é preciso romper o amanhã/ em que a Poesia seja virgem de palavras! /Que a ideia emerja pura do seu ninho, /pura/como um jacto de água! /…»
Autora de uma poesia escatológica, apocalíptica, intimista, mística, denunciadora do exílio interior e do consequente êxodo – «fujamos» -, Madalena Férin é autora de uma maturidade poética, logos do vôo iniciático e, por isso, interior- «Na noite em que eu /morrer/eu abrirei as minhas asas/multicolores. /…» -, ao encontro do ouro alquímico ou a perfeição humana. Há, deste modo, uma regressão embrionária, que nos é trazida pela vontade incessante de regresso ao mar primordial: «Ó venham sereias/que estou cansada/…/venham não tardem/p´ra me buscar/que há muito espero/voltar ao mar»; …/mas se te escrevo água/água liberta/soletrando o teu nome/bebendo o teu fulgor/aqui sobre esta página/ o mar suba/me inunde me dissolva/em seu furor». Realizado o vôo iniciático, é possível alcançar a outra ilha- a ilha, símbolo da Terra Mãe e (re)integrar a origem líquida da vida.
Ler a poesia de Madalena Férin permite-nos ainda, em pleno mês de Agosto, aprofundar a nossa relação com o mar, tema central da obra da poeta, nunca num contexto de superfície, antes, na condição de filhos dessa matriz primordial agregadora de mãe.
Texto: ÂA
[1] O pássaro simboliza a alma.
Referência bibliográfica
Férin, Madalena (2023). violinos ocultos sob a relva: poesia reunida, 1957-2003. Organização e introdução de Ângela de Almeida. Angra do Heroísmo: Instituto Açoriano de Cultura.