Marguerite Yourcenar (1903-1987), nome literário de Marguerite de Crayencour[1], é uma autora absolutamente maior da literatura mundial do século XX: O tempo, esse grande escultor (EMP 82(44) -4 YOU/tem), Como a água que corre (EMP 82(44) -34 YOU/com), Memórias de Adriano (EMP 82(44) -31 YOU/, são, entre outras, obras que constam no catálogo da nossa biblioteca, a par de outra bibliografia activa e passiva da escritora que recomendamos.
O livro que vos trazemos este mês, De olhos abertos (Emp 82(44-83 YOU/DEO), assenta num imenso compromisso ético por parte de Mathieu Galey, o entrevistador que quase anula a sua voz numa compilação formidável das conversas tidas com Yourcenar ao longo de dez anos: apenas alguém como Galey – pelo conhecimento profundo que revela da obra e do pensamento da autora – poderia efectivamente abalançar-se a tão árdua tarefa. Além disso, esta é uma obra de leitura obrigatória para quem pretende conhecer o mundo, as causas pelas quais Yourcenar batalhou, assim como os bastidores dos livros que a todos viabilizam horas de leitura absolutamente aprazível e reflexiva. A título de exemplo, e para percebermos os mais variados temas aqui abordados, leia-se:
«Espanta-me que as feministas aceitem este povo de mulheres-objecto. Espanta-me, também, que elas continuem a entregar-se à moda de forma gregária, como se a moda se confundisse com a elegância, e que milhões delas aceitam, numa completa inconsciência, o suplício de animais martirizados para neles se ensaiar produtos cosméticos, quando não agonizam em armadilhas ou espancados na neve, para assegurar a essas mesmas mulheres sangrentos atavios». (Yourcenar, 1989:197)
Ou ainda, quando Galey pergunta se Marguerite lê jornais todos os dias:
«Nem todos os dias. (…). É preciso lê-los todos e verificá-los uns pelos outros. (…) a imprensa é com demasiada frequência um espelho falseado, ou os acontecimentos e os homens aparecem-nos deformados, aumentados, diminuídos, segundo os casos. E depois porque o fundo das coisas sempre nos escapa…» (Yourcenar, 1989: 209)
Senhora de uma sabedoria quase infinita, inteligente, solidária, atenta e combatente incansável pelo cumprimento integral dos direitos humanos, exigente consigo própria no acto da escrita , respondeu que
«Nada é mais cansativo do que escrever um ensaio. É preciso efectuar uma investigação, é preciso transformarmo-nos em juízes de instrução permanente, ou em juízes, muito simplesmente. E há, ao mesmo tempo, algo de desencorajador neste trabalho. Damo-nos conta de que nunca atingiremos o objectivo (…), na medida em que se sabe que não se pode chegar à absoluta exactidão.» (Yourcenar, 1989:135)
Consciente do trabalho de oficina que é o do escritor, acrescentou que
«… o escritor é, em suma, o secretário de si mesmo. Quando escrevo, realizo uma tarefa, estou sob o meu próprio ditado, de certo modo; faço o trabalho difícil e fatigante de pôr em ordem o meu próprio pensamento, o meu próprio ditado.» (Yourcenar, 1989: 109)
Ela, grande, voz insubmissa e inigualável, cultivando um estilo profundo e pessoal nos mais variados géneros literários, a primeira voz feminina a merecer integrar a Academia Francesa. A educação centrada na figura do pai – a mãe morrera quando Marguerite tinha apenas 10 anos de idade – as viagens, o exílio nos Estados Unidos da América do Norte – onde passou a viver após a invasão de Paris pelos alemães, em 1939, o conhecimento universal e o amor à humanidade tornam este livro um documento indispensável para quem pretende ler, entender e desfrutar da sua obra multímoda.
Referências literárias
Yourcenar, Marguerite (1984). De olhos abertos. Conversas com Mathilde Galey. Maria Eduarda Correia, trad. Lisboa: Difel (1980, 1ª ed., Paris, éds du Centurion).
Direitos de autor: AdA/BPARPDL
[1] Yourcenar é um anagrama de Crayencour.