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Destaque do mês – Outubro

      Nas esquinas do olhar, o terceiro livro de Luís Mesquita de Melo – autor de Humidade dos dias e Navegações e outras errâncias – é o primeiro romance do autor natural da cidade da Horta.  Esta ficção tem momentos poéticos de grande beleza e marcas autobiográficas, mas não com um pacto autobiográfico, segundo o conceito de Philipe Lejeune – identificação clara entre o autor, o narrador e a personagem -, antes como Doubrovsky esclarece em 1977, ao criar o termo autoficção, lembrando e bem que há narrativas que, apesar de partirem de aspectos da biografia do autor, desenvolvem esses aspectos de forma ficcional.  Eis o que acontece com Nas esquinas do olhar. De facto, o autor nasceu e viveu na Horta até ir estudar para Lisboa, onde concluiu Direito. Em 1990, foi para Macau, onde trabalhou como assessor do Presidente da Assembleia Legislativa de Macau.  De 1997 a 2004, esteve novamente em Lisboa, onde trabalhou como advogado e, em 2005, regressou a Macau em 2005 e, de seguida, trabalhou no Vietnam. Actualmente, a viver em Lisboa, visita regularmente à ilha natal, onde consegue reviver o seu primeiro mar, a contemplação dos barcos, a navegação e as regatas, que serão sempre diferentes das que regularmente viveu no oriente. Há, por isso, neste romance, um inconsciente pessoal e colectivo que viabiliza a recuperação das memórias vividas a ocidente e a oriente e que constitui a matéria sobre a qual se desenvolve as esquinas do olhar no final dos anos oitenta e também nos anos noventa, quando já se falava que Portugal iria entregar a última colónia. Ora, Portugal entregou Macau à República Popular da China apenas em 1999: foram 442 anos de colonização portuguesa. Este título, Nas esquinas do olhar, que é recorrente ao longo da obra, assume também outras formas – as esquinas do tempo, as esquinas do medo – colocando-nos assim no ponto mais recôndito, menos acessível e, talvez por isso, aquele que abre uma brecha, quando duas realidades se tocam (ocidente e oriente, Álvaro dos Reis e Thu, passado e presente, repressão e liberdade). Digo isto a propósito do «olhar» que, em algumas religiões do oriente, é um símbolo de barreira, de fronteira – impede, assim, a passagem para lá de.

Através de um narrador omnisciente, conhecemos a viagem interior ou a navegação de Álvaro dos Reis – uma homenagem clara ao cansaço e à deriva interior de Álvaro de Campos, qual Ícaro «Até ali, Álvaro dos Reis sobrevoara a vida num vôo rasante». Ainda, uma homenagem ao seu «opiário» e ao epicurismo de Ricardo Reis, o seu carpe diem, se bem que a grande referência neste romance é efectivamente Álvaro de Campos – «Esta vida de bordo há-de matar-me/…Perdi os dias que já aproveitara/…/…/Trabalhei para ter só o cansaço/Que é hoje em mim uma espécie de braço/Que ao meu pescoço me sufoca e ampara. /…/Eu acho que não vale a pena ter Ido ao Oriente e visto a Índia e a China./» (Fernando Pessoa nunca esteve no oriente). A propósito, encontramos outras referências neste romance, como é o caso de Camilo Pessanha, curiosamente, também licenciado em Direito e que, cumprindo um exílio voluntário em Macau, lá viveu durante 30 anos, tendo sido também jurista e criando uma poesia muitas vezes saída de um olhar onírico sobre Macau. Margarite Duras, que nasceu na Indochina e que, entre outros, escreveu O amante, também com algumas marcas autobiográficas, deixando-nos ainda contemplar através das palavras, tal como Nas esquinas do olhar, a beleza do rio Mekong, ali, no sudoeste da Ásia.

Eis as primeiras linhas desta ficção:

Esta é a história de Álvaro dos Reis, ilhéu atlântico, faialense de nascimento que cresceu entre a tentação do grande Sul e da navegação de longo curso, as regras da lógica científica e o sonho livre da escrita e acabou encalhado na aridez do Direito, entre uma e outra coisa, à luz entediante do sol nascente, a quebrar continentes. Mas é também a história de Thu, uma rapariga vietnamita, impossivelmente bonita, que desceu sem querer ao mais baixo de si, do outro lado do Golfo de Tonkin, na margem errada do Rio das Pérolas, quando só queria dançar na sua vontade triste de querer ser alegre, e de um chinês, bate-fichas em Macau, capaz de manobrar o lado mais negro da fraqueza humana. (P.12)

Num universo espacial que passa pela ilha do Faial, Lisboa, Macau,  Vietnam – opondo a utopia do mar e da ilha natal, a ocidente, ao universo distópico da memória da guerra do Vietnam e das noites soterradas no jogo e na prostituição, a oriente, esta é uma história sobre errância, sobre migrações, sobre liberdade e libertação. Álvaro dos Reis sai de Lisboa, onde era advogado, e vai para Macau trabalhar onde conhece a vietnamita Thu, que decide libertar. Esta é, efectivamente, uma história sobre a condição da mulher prisioneira das noites soturnas de Saigão e de Macau. Este é um romance sobre a condição do escritor, sobre o fardo que sobre nós pesa, até conseguirmos ter uma vida de plena entrega á escrita.

Este é um romance sobre o mar matriz, origem, berço líquido primordial, subtexto que une e percorre toda a obra e é também uma viagem para a libertação, começando por libertar Thu da rede de prostituição e de toda a violência adjacente que vivia nas noites de Macau. E é uma viagem peregrina para a libertação da missão do escritor. Este é o tema central do romance. E é por isso que este tema torna o romance circular, aspecto que converge significativamente para o universo simbólico da ilha-refúgio-origem-símbolo da terra mãe – a mãe tem uma função libertadora e o mar é sempre a primeira mãe. Assim, o romance começa e acaba com a chegada de Álvaro dos Reis à ilha natal.

À semelhança de Camilo Pessanha, Maria Ondina Braga, Sophia de Mello Breyner, para falar de autores portugueses, Luís Mesquita de Melo, no seu romance, entrega ao narrador um campo literário de grande amplitude. Esse oriente trazido para o texto universaliza a função do escritor, entregando-lhe também a função de desconstruir preconceitos e estereótipos. Afinal, conforme escreveu um dos maiores filósofos e críticos literários de sempre.

 

Disponível para consulta local

Melo, Luís Mesquita de – Nas esquinas do olhar. 1ª ed. Lisboa: Astrolábio Edições, 2024.

BPARPD AÇORES 8/2511