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ERNESTO DO CANTO E O SEU ENSAIO BIBLIOGRAPHICO SOBRE AS LUTAS LIBERAIS

Vicente Machado de Faria e Maia, no obituário publicado por ocasião da morte de Ernesto do Canto, escreveu o seguinte: viu alvorecer a vida na casa e na época em que um príncipe heroico promulgou as primeiras leis do regime constitucional nos Açores. Criado sob o influxo da nova ordem de princípios, recebeu o impulso benéfico que eles imprimiram em muitos espíritos de eleição. Homem de ação, de talento e de estudo, abraçou as ideias liberais (…) e consagrou um culto fervente às nossas antigas glórias, em laboriosas e profundas investigações históricas[1].

 

Efetivamente, Ernesto do Canto foi, no sentido literal do termo, um filho do Liberalismo, até pela data e local de nascimento, que ocorreu a 12 de dezembro de 1831 na quinta dos Prestes, onde seu pai instalara a família para ceder a residência citadina aos oficiais do exército de D. Pedro que no verão desse ano desembarcaram na ilha de S. Miguel, comandados pelo conde de Vila Flor.  Embora não estivesse consciente do significado histórico dos acontecimentos que então se desenrolavam – decretos do Governo da Regência, missa campal no Relvão e partida do Exército Libertador de Ponta Delgada – Ernesto do Canto veio a dedicar mais tarde, na sua vida adulta de bibliógrafo erudito, uma atenção particular às Lutas Liberais e a comprová-lo estão algumas edições do Archivo dos Açores[2] onde compilou documentação que mereceu o aplauso dos entendidos sobre o assunto, tal como se lê nesta passagem da carta que o seu sobrinho Eugénio Pacheco lhe dirige de Coimbra em 1885:

 

O Dr. Gusmão[3], que por aqui ficou estas férias e com quem tenho tido larguíssimos cavacos, o outro dia fez bondosíssimos gabos a este excelente trabalho do tio, e acrescentou que mais valiam os números 34, 35 e 36 do Arquivo, que os 5 tomos do Soriano. Esta apreciação por um homem tão competente como o Dr. Gusmão, deve ser bem lisonjeira para o tio.[4]

 

Anos mais tarde publicará o Ensaio Bibliographico. Catálogo das obras nacionaes e estrangeiras relativas aos sucessos políticos de Portugal nos anos de 1828 a 1834[5], obra em grande parte subsidiária das coleções de folhetos e opúsculos que nos Açores abundavam sobre as Lutas Liberais, a começar por aquela que tinha herdado do pai e passando pelas bibliotecas particulares do seu irmão José do Canto[6], já então um reputado bibliófilo, bem assim como a do seu patrício e antigo condiscípulo coimbrão, José Afonso Botelho Andrade[7]. Note‑se que estamos perante uma abordagem pioneira à Guerra Civil de 1828-1834, desprovida de qualquer inclinação ideológica e feita de forma exaustiva e criteriosa, apresentando uma sistematização bibliográfica da miríade de impressos produzidos por constitucionais e miguelistas, que algumas figuras intelectuais de dimensão nacional, como era o caso de Teófilo Braga, saudaram nestes termos:

 

Do Ensaio Bibliographico tenho a dizer que é extremamente interessante, e que a época bem merecia este valioso inventario. Sabia que alguns amadores coligiam todos os opúsculos relativos à questão liberal, tal como o Miguel Osório (das Lágrimas); com este subsidio, hoje, é que se vê a importância deste material histórico. Eu, olho esta serie de publicações do ponto de vista literário e chego à conclusão que esse movimento de transformação que implantou entre nós o falsificado regímen monárquico‑cons­ti­tu­cional, não inspirou mais do que poesias enfáticas e prosas retóricas de larga banalidade. O que o regímen está sendo, já se acha impresso nos produtos da origem. Fora da vista literária, há outros juízos menos pejora­tivos e talvez mais justos. Em todo o caso o trabalho bibliográfico era preciso, e V. Exª deu mais um exemplo de operosa solicitude. Felicito-o com intima satisfação, e, aí, nesse recanto do mundo, por assim dizer sozinho, é como um farol, que mesmo de longe alumia para os centros de maior atividade.[8]

 

Dado o recorte académico desta obra, a sua impressão foi reduzida à modesta tiragem de 120 exemplares, mas a confraria dos “amadores” que estudavam e colecionavam folhetos da época Liberal não tardou a reagir à publicação do Ensaio e nesse mesmo ano Pedro Augusto Dias, Lente da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, dá à estampa um livro intitulado Archeologia politico‑literaria. 1828-1834[9], cujo último capítulo já é dedicado às “Correções, esclarecimentos e aditamentos” ao Catálogo apresentado por Ernesto do Canto. Daí em diante chovem na  secretária do investigador açoriano cartas com informações suplementares ou, simplesmente, com felicitações pelo trabalho desenvolvido e a lista de correspondentes compreende alguns antigos exilados políticos (António Luís de Seabra[10]) e veteranos da Guerra Civil (Simão José da Luz Soriano[11]), bem como outros nomes da historiografia liberal portuguesa, casos de Clemente José dos Santos[12] e Joaquim Martins de Carvalho[13]. Se acrescentarmos mais alguns estudiosos como Júlio de Castilho, Augusto Xavier da Silva Pereira, Domingos Garcia Peres e Aníbal Fernandes Tomás, temos delineado um conjunto de eruditos cuja rede epistolar levará, como é próprio das bibliografias, Ernesto do Canto a publicar em 1892 uma segunda edição corrigida e aumentada do seu Ensaio[14], mais de um século depois ainda citado como obra de referência em trabalhos neste domínio[15].

 

Num ato de cidadania prestante e amor pátrio que nunca é demais lembrar, Ernesto do Canto deixou a sua livraria[16] à Biblioteca Pública de Ponta Delgada, contendo centenas de títulos sobre esta época memorável da História de Portugal, bem assim como a valiosa correspondência que integra esse legado, a qual nos deixa entrever as circunstâncias em que, não obstante a sua condição periférica, um intelectual açoriano contribuiu para a construção oitocentista da memória do Liberalismo português.

 

 

 

[1] Cf. O Heraldo. Ponta Delgada: Typ. Lit. Ferreira & Cia., 1899-1901. N.º especial (26 ago. 1900).

[2] Vd. Archivo dos Açores. Publicação Periódica destinada à vulgarização dos elementos indispensáveis para todos os ramos da História Açoriana. vols. 6 e 7. Ponta Delgada: Tipografia do Archivo dos Açores, 1884-1885.

[3] Francisco António Rodrigues Gusmão (1815-1888). Médico, Arqueólogo e Epigrafista.

[4] Cf. Carta de Eugénio Vaz Pacheco do Canto e Castro a Ernesto do Canto. Coimbra, 4 set. 1885 – BPARPD. Livraria Ernesto do Canto. Correspondência, cx. 3, n.º 988, fl. 2 v.°.

[5] Ponta Delgada: Typ. do Archivo dos Açores, 1888.

[6] Vd. Carlos Guilherme Riley; Iva Matos Cogumbreiro, coord.s – A biblioteca de José do Canto: o homem ao espelho dos seus livros e manuscritos. [Ponta Delgada]: Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 2020.

[7] Vd. A Livraria de José Afonso Botelho Andrade – BPARPD. Documento do mês, outubro 2022. Disponível em linha: https://bparpd.azores.gov.pt/livros_mes/documento-do-mes-34/.

[8] Cf. Carta de Teófilo Braga a Ernesto do Canto. Lisboa, 4 mar. 1888 – BPARPD. Livraria Ernesto do Canto. Correspondência, cx. 3, n.º 1157.

[9] Porto: Typographia Central, 1888.

[10] António Luís de Seabra e Sousa (1798-1895). Após a “Belfastada” procurou refúgio fora do país em 1828, fixando-se em França até agosto de 1833, data em que regressa a Portugal. Figura prestigiada do regime Liberal, foi deputado, ministro, reitor da Universidade de Coimbra e Par do Reino, tendo sido agraciado com o título de Visconde de Seabra pelo rei D. Luís (25 abr 1865), distinção que se deve em parte ao reconhecimento do trabalho desempenhado na coordenação do Código Civil (Código Civil Português: projecto. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1859), monumento jurídico que se manteve em vigor (com algumas adaptações) até 1967.

[11] Simão José da Luz Soriano (1802-1891). Integrou as fileiras do Exército Libertador como voluntário do Batalhão do Corpo Académico e durante a sua estadia nos Açores (1830-1832) redigiu os periódicos Crónica da Terceira e Folhinha da Terceira. O seu contributo historiográfico para o estudo deste período está traduzido nas seguintes obras: História do Cerco do Porto (2 vol.s. Lisboa: Imprensa Nacional, 1846-1849); História da Guerra Civil e do estabelecimento do governo parlamentar em Portugal, compreendendo a história diplomática, militar e política deste reino desde 1777 até 1834 (10 vol.s. Lisboa: Imprensa Nacional, 1866).

[12] Clemente José dos Santos (1818-1892). Alto funcionário da Câmara dos Deputados e Lente de Taquigrafia na Câmara dos Pares, autor de uma importante compilação de fontes documentais e informações para a História do Parlamento português no século XIX: Documentos para a História das Cortes Gerais da Nação Portuguesa (8 tomos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1883-1891); Estatísticas e Biografias Parlamentares Portuguesas (6 tomos. Porto: Tipografia do Comércio do Porto, 1887-1892).

[13] Joaquim Martins de Carvalho (1822-1898). Fundador e redator do Conimbricense, jornal de referência na segunda metade do século XIX, e senhor de uma das mais valiosas bibliotecas particulares de Coimbra, publicou Apontamentos para a História Contemporânea (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1864) e Os Assassinos da Beira – Novos Apontamentos para a História Contemporânea (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1890).

[14] Ensaio bibliographico: catalogo das obras nacionaes e estrangeiras relativas aos sucessos politicos de Portugal nos annos de 1828 a 1834. 2.ª ed. correcta e augmentada. Ponta Delgada: Typ. do Archivo dos Açores, 1892.

[15] Vd. Joseph Conefrey – Jornais, Séries e Periódicos Portugueses, 1826-1834 (desde a morte de D. João VI à queda de D. Miguel). Lisboa: Parceria, 1999.

[16] Vd. INVENTÁRIO dos Livros, Jornais, Manuscritos e Mapas do Dr. Ernesto do Canto legados à Biblioteca Pública de Ponta Delgada (Ilha de S. Miguel) e entregues por sua viúva D. Margarida Leite do Canto. Évora: Tipografia Minerva Comercial, 1905.

Detalhes

Data:
7 Julho, 2023
Hora:
8:00 - 17:00
Categoria de Evento: