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HINTZE RIBEIRO E A EMIGRAÇÃO AÇORIANA PARA O HAVAI

Há 140 anos, no dia 21 de março de 1883, o cônsul do Havai em Lisboa, León Cohen, dirigia ao Ministro das Obras Públicas de então, o micaelense Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro, uma carta anunciando que Sua Majestade o rei  David Kalakaua o tinha agraciado com a Grã-Cruz da Real Ordem de Kapoliani[1]. Esta inusitada distinção honorífica, uma das primeiras que o estadista açoriano recebeu ao longo da sua vida política[2], não teve qualquer significado especial para além da cortesia protocolar, mas é um pretexto para falar daquilo que levou Portugal e o Havai a estreitarem relações, ou seja, do expressivo número de emigrantes portugueses que a partir dos finais da década de 1870 se dirigiu para o arquipélago polinésio.

O início do fluxo migratório tem origem numa brochura publicada em 1878: Breve Notícia acerca das Ilhas Sandwich e das vantagens que elas oferecem à emigração que as procure[3]. O seu autor, Willelm Hillebrand, era um médico e naturalista alemão que durante duas décadas (1851-1871) vivera em Honolulu e fizera parte da Junta de Imigração e do Conselho Privado da monarquia havaiana. De regresso à Europa estanciara na Madeira em 1876, onde se apercebeu das analogias geomorfológicas e climatéricas entre os dois arquipélagos e, além disso, verificou que a cultura da cana do açúcar estava profundamente enraizada nas tradições madeirenses. Ora, a partir de 1876, quando o Havai celebra o Tratado de reciprocidade comercial com o Governo americano, o número de plantações de cana sacarina dispara em flecha no arquipélago polinésio e, consequentemente, aumenta a procura de mão de obra familiarizada com essa cultura, o que explica o aparecimento da referida brochura no Funchal, já que a Junta de Imigração havaiana preferia os colonos agrícolas europeus aos de origem asiática.

Em setembro de 1878 chegam a Honolulu, a bordo da barca alemã Priscilla, os primeiros madeirenses e o fluxo migratório alargou-se no ano seguinte aos Açores, onde um agente da Junta de Imigração havaiana, Richard Seeman[4], socorrendo-se das suas ligações à colónia estrangeira residente em Ponta Delgada[5], estabelece na ilha de S. Miguel uma rede de propaganda e operações de recrutamento que, entre 1879 e 1883, como documenta o correspondente livro de registo de passaportes do Governo Civil local, resultará na partida de 6.210 homens, mulheres e crianças para o arquipélago havaiano[6].

As provações a bordo em termos de salubridade e dieta alimentar, numa viagem já de si longa e desgastante que podia durar quatro meses, bem como as condições duvidosas de alguns contratos de trabalho, levantaram uma onda de denúncias e protesto na imprensa local, a qual também encontrou eco na Câmara dos Deputados quando, em março de 1882[7], Luciano Cordeiro, um dos pilares da Sociedade de Geografia de Lisboa, desvalorizou esses rumores e defendeu o incremento da presença portuguesa no Havai e na Oceânia, tema que adquiriu uma visibilidade nada despicienda nas páginas do periódico dessa instituição ao longo da década de 1880[8].

O surto migratório para o Havai não despertou particular atenção na capital do reino. Quando o rei Kalakaua passou por Lisboa em agosto de 1881, cumprindo um grand tour à volta do mundo, a imprensa pouco destaque deu à sua presença e mesmo Hintze Ribeiro, que nesse verão assumira interinamente as funções de Ministro dos Negócios Estrangeiros, nenhuma referência lhe faz na correspondência pessoal dirigida ao seu irmão Artur[9]. O assunto, contudo, não passou despercebido ao Governo, o qual procurou regulamentar as condições anárquicas das primeiras vagas migratórias entabulando conversações com representantes havaianos no sentido de celebrar uma “Convenção de comércio, navegação e emigração” entre os dois reinos[10], e tudo leva a crer ter sido nesse âmbito que foi atribuída a Hintze Ribeiro a ordem honorífica, atestada pelo diploma que é o cartaz do documento deste mês[11].

Acerca deste tema que, não obstante alguns trabalhos já publicados[12], ainda carece de maior estudo, não podemos terminar sem uma referência à campanha de protesto que entre 1881 e 1883 veio a lume na imprensa de Ponta Delgada, onde se destacaram os periódicos O Binóculo e A Época. O primeiro destes títulos, dirigido pelos irmãos João e Augusto Cabral, dois émulos micaelenses de Rafael Bordalo Pinheiro, foi porventura o único jornal do país a fazer uso do desenho satírico para denunciar a purga migratória que estava a ocorrer, como se encontra exemplarmente ilustrado num desenho em que a própria ilha de S. Miguel é retratada como uma barca rumando em direção ao Havai. Quanto ao semanário A Época, redigido por José Afonso Botelho Andrade, compilou nas suas páginas vários testemunhos críticos sob a epígrafe “Documentos para a História da colonização de Sandwich”, como então era conhecido o arquipélago do Havai, e chegou a noticiar a distribuição gratuita do jornal nas freguesias rurais para que os párocos, regedores e pessoas instruídas pudessem advertir os incautos dos perigos da emigração para estas ilhas[13].

Outros títulos da imprensa micaelense, tais como O Novo Diário dos Açores, A Ventosa, A Vardasca e A República Federal, também emprestaram a sua voz ao coro de denúncias, mas o facto de estarem identificados com correntes republicanas e progressistas, numa conjuntura em que o Partido Regenerador detinha as rédeas do Governo (1881-1887), ajuda a compreender a forma como o tema foi instrumentalizado no quadro da refrega política local. Apesar dos protestos, a derrama populacional adquiriu um caudal cada vez mais volumoso com a introdução de navios a vapor no transporte dos emigrantes, como oficiava o Governador Civil de Ponta Delgada ao Ministério do Reino no início de 1883: (…) tendo aumentado de dia para dia o número de pessoas que desejam emigrar para aquelas ilhas, o que dá lugar a serem mandados agora vapores de grande tonelagem, como sucedeu com o “Hansa”, que comportou 1.173 passageiros[14].

No mesmo ano em que Hintze Ribeiro recebia a distinção honorífica havaiana, acelerava o êxodo dos habitantes da sua ilha natal para o distante arquipélago polinésio, o qual se viria a manter na década seguinte, como assinala um opúsculo do polemista Eugénio Pacheco, sugestivamente intitulado Escravatura Branca.[15]

 

 

[1] Carta do cônsul Leon de A. Cohen a Hintze Ribeiro, ministro das Obras Públicas. [Lisboa], Consulado Hawaiiano, 21 mar. 1883 – BPARPD. Arquivo Hintze Ribeiro, capilha 13.1.18, doc. 9C.

[2] Vd. Isabel Cluny. Ernesto Hintze Ribeiro – uma biografia política (1849-1907). Lisboa: Assembleia da República, 2018 (Coleção Parlamento; 67).

[3] Funchal: Typographia Liberal, 1878.

[4] John Ernest Richard Seeman (1843-1909), nascido em Rathenow (Brandemburgo), veio para os Açores na década de 1860, onde aparece associado às atividades mercantis das famílias D’Orey e Dabney na cidade da Horta (Vd. Roxana Dabney. Anais da família Dabney no Faial. [Horta]: Instituto Açoriano de Cultura: Núcleo Cultural da Horta, 2006, vol. 3).

[5] Seeman casara em 1880 com Harriet Webster Ivens (1844-1911), meia irmã de Thomas Edward Hickling Ivens (1810-1880; Vd. Eduardo Soares de Albergaria. Thomas Hickling – descendentes nos arquipélagos dos Açores, Madeira e Portugal continental. Lisboa: Dislivro Histórica, 2009, pp. 21,25), proprietário da Agência, sita à rua da Graça, onde foi tratado tudo quanto dizia respeito ao embarque da primeira vaga de emigrantes micaelenses para o Havai (veja-se o anúncio publicado no jornal A Persuasão, n.º 913, de 16 jul. 1879).

Após a morte de Thomas Ivens, em maio de 1880, Richard Seeman e a esposa (sempre identificada na documentação como Rita Ivens) fixaram residência na freguesia de S. Pedro em Ponta Delgada e deram continuidade aos negócios da Agência do seu cunhado e irmão.

Para uma perceção cabal do envolvimento de Richard Seeman com as autoridades locais, consultem-se os termos de fiança que assina no Governo Civil antes da partida das embarcações para o Havai (BPARPD. Arquivo do Governo Civil de Ponta Delgada. Termos de fiança (1880-1888) – GCPDL, mç. 275).

[6] BPARPD. Arquivo do Governo Civil de Ponta Delgada. Passaportes. Registo de passaportes, lv. n.º [1], 1875-1883 – GCPDL, lv. 1385. (Disponível em linha: http://www.culturacores.azores.gov.pt/biblioteca_digital/PASSAPORTES-PDL-1875-1883/PASSAPORTES-PDL-1875-1883_item1/index.html?page=1)

Acerca desta fonte documental em particular, veja-se o trabalho de João Luís Medeiros. A emigração micaelense para o Havai (1879-1883). Ponta Delgada: Universidade dos Açores (Seminário Impérios Atlânticos: modelos, estruturas e dinâmicas. Doutoramento em História Insular e Atlântica, séculos XV a XX), 2015.

[7] Vd. Diário da Câmara dos Senhores Deputados (sessão legislativa de 1882), n.º 41 (8 mar. 1882), pp. 614-615.

[8] Veja-se a este respeito o Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa e, muito em particular, as seguintes edições: 3.ª série. n.º 4 (1882), pp. 222-228; 3.ª série. n.º 8 (1882), pp. 504-508; 8.ª série. n.º 1-2 (1888-1889), pp. 1-158.

[9]  Vd. Carlos Guilherme Riley. “Aqui entre nós: correspondência de Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro para Artur Hintze Ribeiro (1874-1879)”. In: Insulana, vol. 63 (2007), pp. 37-94.

[10] Vd. Diário da Câmara dos Senhores Deputados (sessão legislativa de 1882), n.º 99 (29 mai. 1882), pp. 1689-1693.

[11] Diploma pelo qual Kalakaua, rei das Ilhas Hawaiianas, nomeia Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro High Grand Officier da sua Real Ordem de Kapiolani. Honolulu, Palácio, 10 jan. 1883 – BPARPD. Arquivo Hintze Ribeiro, capilha 13.1.18, doc. 12C.

[12] Dos quais destacamos alguns dos títulos dados à estampa no século passado: João Afonso, “Pioneiros insulares da rota das ilhas do Hawaii”. In: I Congresso das Comunidades Açorianas. Angra do Heroísmo, 1979, pp. 161-167; Eduardo Mayone Dias. A Presença Portuguesa no Havai, Separata do Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa, III série, n.º 87, 1981; Joaquim Palminha da Silva. Portugueses no Havai, Séculos XIX e XX, (Da Imigração à Aculturação). Lisboa: Gabinete de Apoio às Comunidades Açorianas, 1996; Sacuntala de Miranda. A Emigração Portuguesa e o Atlântico, 1870-1930. Lisboa: Salamandra, 1999

[13] A Epoca. Ponta Delgada: J. da E. Machado, 1881-1885 (Typ. Imparcial). Ano 1 (n.º 19) 10 mai. 1882, p. 1.

[14] BPARPD. Arquivo do Governo Civil de Ponta Delgada. 1.ª Repartição. Registo de correspondência expedida ao Ministério dos Negócios do Reino (1882-1890), fl.s 11-12, n.º 1/1883 – GCPDL, lv. n.º 118.

[15] Vd. Eugénio Pacheco. Escravatura Branca. Ponta Delgada: Typ. Elzeviriana, 1895.