O documento deste mês, a Escritura da sociedade que faz o Ilustríssimo Simplício Gago da Câmara com António José de Lima e outros, que já foi transcrita e publicada por Supico, numa das suas “Escavações” (*), testemunha o início de uma das grandes aventuras do micaelense, Simplício Gago da Câmara (Ponta Delgada, São Pedro, 19.05.1808 – ibid., São Sebastião, 07.08.1888): uma expedição para a Austrália à procura de ouro.
Em 1852, começaram a chegar a São Miguel, através dos jornais ingleses que vinham nos navios do comércio da laranja, as primeiras notícias acerca da descoberta de ouro na Austrália. Simplício Gago da Câmara, ao ter conhecimento destas notícias, decidiu realizar uma expedição ao continente australiano. Em conjunto com José de Arruda Botelho, organizou e tornou público o projeto expedicionário, no qual era chefe, administrador e caixa depositário (segundo as cláusulas 4.ª e 6.ª da referida escritura), ficando responsável por cobrir todas as despesas (cláusula 1.ª) e a quem os associados deviam prestar total obediência (cláusula 7.ª).
Como responsável pela expedição, fretou a embarcação Water Lilly, cujo capitão e proprietário era Mr. John Busk, de Londres. A 23 de abril de 1853, a embarcação chegou a São Miguel, altura em que foi anunciada, na imprensa local, a necessidade de um médico que acompanhasse a expedição, tendo a seleção recaído no Dr. Gomes (**). A 28 de julho desse ano, o Water Lilly saiu de São Miguel rumo à Austrália. A expedição contava com 68 pessoas, as quais partiram com o objetivo de regressar dentro 3 anos, enriquecidas pelo ouro de terras australianas, prazo esse que apenas teria início a partir do desembarque na Austrália, segundo a cláusula 3.ª da escritura.
Nessa escritura, constam 17 associados (16 homens e 1 mulher). Destes, 11 residiam na cidade de Ponta Delgada, sendo que 1 era natural da ilha de São Jorge, 3 do Nordeste e 1 da Ribeira Grande. Os outros 6 eram residentes nas Capelas, um dos quais natural dos Arrifes. Na sua maioria, jovens com menos de 25 anos e solteiros, eram todos de origem humilde, desde pedreiros, carpinteiros, serradores, cabouqueiros, arrieiros e trabalhadores não especificados.
Segundo José Gago (***), após cerca de 108 dias de viagem, a expedição desembarcou no porto de Adelaide, a 28 de dezembro de 1853. À chegada, apareceram os primeiros obstáculos ao bom sucesso da expedição: não só necessitavam de uma concessão, como os assaltos nos caminhos para as terras onde havia ouro eram bastante comuns, o que obrigava à aquisição de armas e ferramentas, que se apresentavam como custos adicionais às despesas da deslocação às minas.
Enquanto Simplício Gago da Câmara, líder da expedição, tentava obter uma concessão (que, segundo José Gago, demorou três meses a chegar), os restantes membros da expedição trabalharam para o governo inglês, nas estradas para Melbourne e Bendigo. Isso, não só porque necessitavam de dinheiro para sobreviver, como eram obrigados a trabalhar todos os dias não santificados, ainda que em ofícios que não os que desempenhavam em São Miguel, segundo as cláusulas 9.ª e 10.ª do contrato notarial. A somar aos contratempos, a terra concedida ao grupo de aventureiros açorianos foi uma desilusão, porque não só era pobre no precioso metal, como já tinha sido explorada, sem licença, por japoneses.
Algum tempo depois, Simplício Gago da Câmara libertou os associados das suas obrigações contratuais, dando-lhes liberdade para decidirem o que fazer a seguir, assumindo que jamais iriam conseguir enriquecer naquela mina.
Do grupo expedicionário que partira de São Miguel, apenas Simplício Gago da Câmara e seu irmão Dinis, José de Arruda Botelho, António Borges da Câmara e Medeiros, Manuel Cordeiro Grilo e José de Sousa Dourado se dirigiram a Melbourne com o intuito de regressarem à ilha micaelense. Ali, enquanto aguardavam que José Honorato Gago da Câmara, outro irmão daqueles, enviasse o dinheiro necessário ao regresso do grupo, os irmãos José Manuel e João Francisco Gomes abriram um consultório médico e os restantes uma barbearia, ainda segundo o relato de José Gago.
Em 1857, Simplício Gago da Câmara conseguiu comprar os bilhetes de viagem no veleiro Lightning, do capitão Buly Forbes. A 20 de agosto desse ano, embarcaram finalmente, com destino à Europa. A 23 de outubro do mesmo ano, aportavam a Inglaterra, onde tencionavam apanhar um dos navios do comércio da laranja e regressar a São Miguel, pondo fim à aventura australiana que se revelou um fracasso.
(*) “Escavações”, de Francisco Maria Supico, publicadas na Persuasão (n.º 1890, 06.04.1898 e n.º 1891, 13.04.1898).
(**) José Manuel Gomes, natural da vila do Redondo e cirurgião do partido da Câmara da Ribeira Grande.
(***) Nome com que o Eng.º José Honorato Gago de Medeiros assinou uma série de artigos publicada no Correio dos Açores e dedicada a esta aventura (n.º 3494, 12.06.1932; n.º 3500, 19.06.1932; n.º 3522, 17.07.1932; n.º 3539, 06.08.1932).
Legenda do documento do mês:
Escritura de sociedade que faz o Ilustríssimo Simplício Gago da Câmara com António José de Lima e outros
Ponta Delgada, 12 de julho de 1853.
BPARPD. Cartório Notarial de Ponta Delgada – 2º Ofício, Tabelião João Bernardo Melo, lv. n.º 14 (05.11.1852 a 24.02.1854) – NOT 2511, fl.s 117 a 124.