Na primeira metade do século XIX, o teatro em Portugal é alvo de uma reforma protagonizada por Almeida Garrett. Disto é exemplo a criação da Inspeção Geral dos Teatros e Espetáculos Nacionais, em 1836, cujo principal objetivo era a promoção da reforma progressiva da arte de representação, a decência dos espetáculos públicos e a proteção dos artistas (Diário do Governo, n-º 295, 14.12.1837, p. 1393).
Dado o elevado número de casas de espetáculos que ardiam no século XIX, esta reforma do teatro português visou, segundo Maria Isabel Rosinhas, a criação do cargo de Inspetor Geral dos Incêndios, ao qual, segundo o
« Art.º 28º Compete-lhe a vistoria de todos os teatros e mais casas de espetáculos e/ou bailes públicos, com o fim de ver se nestes estabelecimentos, são cumpridas as disposições da portaria do ministério do reino de 17 de setembro de 1853, entendendo-se com as autoridades competentes, para que os respetivos empresários 37 sejam compelidos a cumpri-la sob pena de se lhes fecharem os teatros, circos ou salões.
Artº 29º Deverá enviar destacamentos para os teatros, circos ou salões de baile etc., nas noites em que funcionarem» (Maria Isabel Rosinhas – O Teatro Baquet: da fundação às cinzas (1859-1888). Porto, 2015, p. 36).
Em Ponta Delgada, o cargo de Inspetor Geral de Incêndios foi ocupado, por duas vezes, por Alfredo da Câmara (Ponta Delgada, São José, 08.06.1871 – ibid., São Sebastião, 16.09.1938), no início do século XX. O documento selecionado este mês é uma carta datiloscrita por ele e dirigida ao Presidente da Direção da Sociedade Teatral Micaelense, informando-o de que ocupa o cargo de Inspetor dos Incêndios de Ponta Delgada (o timbre encontra-se apenas datiloscrito), aparentemente pela primeira vez, pois existe mais uma carta, de 1919, em que informa ocupar “novamente” o dito cargo. Ironicamente, embora se trate de um documento do arquivo da Sociedade Teatral Micaelense, respeitante à prevenção de incêndios, o Teatro Micaelense acabaria por ser consumido, uns anos mais tarde, mais precisamente a 9 de fevereiro de 1930, por um desastroso incêndio.
Segundo Cristina Moscatel, autora do verbete sobre Alfredo Raposo da Câmara na Enciclopédia Açoriana (http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=8860), este micaelense, filho de Vitorino da Câmara, guarda da Alfândega, e de Deolinda Augusta de Freitas, costureira, foi jornalista e bombeiro voluntário desde 1892, chegando a presidir à Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários, de 1920 até inícios da década de 1930. Difundiu e incentivou a causa operária entre os micaelenses, tendo a sua luta socialista culminado com a primeira celebração do 1.º de Maio nos Açores, em 1897. Fundou o primeiro clube náutico de Ponta Delgada, ao qual presidiu e que mais tarde deu origem ao Clube Naval. Incentivou o desenvolvimento do Serviço de Socorros a Náufragos da Associação de Bombeiros Voluntários, foi sócio fundador da Sociedade Micaelense Protetora dos Animais, diretor do Asilo de Mendicidade e sócio protetor do Asilo de Infância Desvalida. Foi também mordomo do Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Ponta Delgada e exerceu funções como funcionário da Junta Geral do distrito de Ponta Delgada e o cargo de administrador do concelho.
Após a sua morte, um grupo de amigos organizou-se e apresentou uma proposta à Câmara Municipal de Ponta Delgada, no sentido de atribuir o seu nome à Rua do Melo, homenageando, assim, um homem que ali passara os últimos dias de uma vida marcada por uma intervenção social bastante versátil, consequência da sua enorme vontade de contribuir para o desenvolvimento da sociedade micaelense. Todavia, esta proposta não foi aceite. Não obstante, procuramos com este documento do mês dar destaque a Alfredo da Câmara, figura micaelense conhecida de alguns, que agora o relembram, e desconhecida de outros.
Legenda do documento do mês:
Carta de Alfredo da Câmara, Inspetor dos Incêndios de Ponta Delgada, dirigida ao Presidente da Direção da Sociedade Teatral Micaelense, Francisco Peixoto da Silveira.
Ponta Delgada, 2 de fevereiro de 1911.
BPARPD. Sociedade Teatral Micaelense, doc. 94.