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Documento do mês

O envenenamento do Dr. Augusto da Silva Baptista,

condenação e fuga de D. Maria da Luz Botelho

 

Meu caro amigo

O drama de que tu poderias ter sido um dos personagens, que vem uma vez à scena, teve o final, como já deves saber, o seu desenlace tragico: a mulher do Dr. Baptista envenenou-o.”

 

Assim se referia Aristides da Mota, em carta dirigida ao médico, Bruno Tavares Carreiro, sobre o crime cometido por D. Maria da Luz Botelho, tema que agitou a sociedade de Ponta Delgada, no início da década de 1880, e que orientou a seleção do conjunto de documentos à guarda do Arquivo Regional de Ponta Delgada para a rubrica deste mês.

Embora do registo de óbito nada conste sobre a causa da morte, sabemos que o Dr. Augusto da Silva Baptista faleceu às 11 horas da noite do 1.º de agosto de 1880, na sua casa de residência, à rua do Mercado, freguesia de São Pedro de Ponta Delgada. Com 38 anos, era formado em Medicina, provavelmente em Coimbra, onde nascera, e casado com D. Maria da Luz Botelho, não fez testamento e deixou dois filhos menores. (1)

A 27 de outubro seguinte, são emitidos mandados de captura para detenção de D. Maria da Luz Botelho, a todas as autoridades (2). A 3 de novembro, Aristides da Mota comenta, na carta supracitada, que a acusada do crime “Anda homisiada ha mais de um mez e as buscas e investigações tem sido tão bem dirigidas pela Sen[hor].ª justiça, que já muita gente pensa que não tendo sido presa até aqui não o será d’aqui em diante.” Não obstante, a acusada acabou por ser presa a 9 de janeiro de 1881, tendo-se declarado inocente.

O julgamento iniciou-se a 20 de maio de 1881, sendo a ré acusada de ter envenenado mortalmente o marido (3). Não é conhecida a existência desse processo, no Arquivo Regional de Ponta Delgada, supondo-se que terá subido do Tribunal da Relação dos Açores a instância superior, ou sido transferido para a Relação de Lisboa, aquando da extinção daquele, em 1910. A romanesca descrição que a jornalista Anabela Natário publicou em 2015, no Expresso, leva, todavia, a crer que o consultou detalhadamente.

Segundo Susana Serpa Silva (4), D. Maria da Luz Botelho apresentava um perfil pouco comum dentro do cômputo geral das rés femininas micaelenses do século XIX, que eram mulheres de baixa posição social, cujos crimes tinham motivações intimamente relacionadas com a precaridade das suas condições de vida. Tinha 24 anos aquando da ocorrência do crime, duas filhas pequenas e um estatuto social conceituado. Foi condenada a prisão perpétua “em possessões ultramarinas fora das cidades principais”, sentença confirmada pelo Tribunal da Relação dos Açores, mas divergindo quanto ao local do degredo, especificado para a colónia de Moçambique.

Contudo, este crime não ficou por aqui. Na noite de 8 para 9 de novembro de 1882, D. Maria da Luz Botelho evadiu-se, com sucesso, da cadeia de Ponta Delgada, levando consigo as duas filhas, uma criada e a sentinela que lhe facilitou a fuga. Partiram rumo aos Estados Unidos da América, a bordo do iate baleeiro americano Hattie E. Smith. (5)

O que se encontra no Arquivo Regional de Ponta Delgada, é um traslado do processo judicial aberto no então Juízo de Direito da comarca, por causa dessa fuga, no âmbito do qual foram também arguidos os cúmplices que permaneceram na ilha, Manuel Pereira Machado, empregado da casa consignatária do iate baleeiro, António São Bento, marítimo que conduziu a fugitiva e acompanhantes para bordo do iate, e José de Sousa Condinho, carcereiro interino da cadeia de Ponta Delgada.

Desse processo, apresentamos a folha de rosto, complementando-a com a carta de Aristides da Mota a Bruno Tavares Carreiro e com as páginas iniciais de uma peça de teatro popular, intitulada “O envenenamento do Dr. Batista”, recolhida por Armando Côrtes- Rodrigues.

 

(1) – Fora batizado a 13 de outubro de 1841, em cujo registo não consta a data de nascimento, filho de Manuel da Silva Baptista e de Cândida da Encarnação (Coimbra. Paróquia de Santa Justa. Registo de batismos, lv. de 1788-1855, fl. 237v.º).

O casamento realizara-se a 26 de novembro de 1870, na igreja paroquial do Livramento, lugar de Rosto de Cão, concelho de Ponta Delgada, tendo a nubente 15 anos de idade, pois ali nascera a 27 de agosto de 1855, filha do negociante e proprietário, António Jacinto George Botelho, então já falecido, e de sua 2.ª mulher, D. Jacinta Emília de Oliveira do Vale. O Dr. Augusto da Silva Baptista residia, então, em Vila Franca do Campo, onde certamente exercia, no respetivo Hospital da Misericórdia (Ponta Delgada. Paróquia de Livramento. Registo de casamentos, ass. n.º 15/1870, fl.s 10v.º-11).

Os dois filhos menores mencionados eram, afinal, as filhas Olímpia (nascida a 24 de julho de 1874 e batizada na Matriz de São Miguel Arcanjo, Vila Franca do Campo, onde então residia o casal [ass. n.º 137/1874]) e Berta (esta, já nascida em São Pedro de Ponta Delgada, a 10 de agosto de 1876 [ass. n.º 139/1876]).

(2) – NATÁRIO, Anabela – “Serviu-lhe a morte num prato de arroz”. In Expresso, 7 set. 2015. Disponível em linha em https://expresso.pt/sociedade/2015-09-07-Serviu-lhe-a-morte-num-prato-de-arroz .

(3) – A República Federal. Ano 2, n.º 6 (24 mai. 1881), p. 4.

(4) – SILVA, Susana Serpa – Violência, desvio e exclusão na sociedade micaelense oitocentista (1842-1910). Ponta Delgada: CHAM, 2012.

(5) – A Época. Ano 1, n.º 47 (25 nov. 1882), p. 2, e Libello accusatorio, a fl.s 145 do processo de crime de fuga.

 

 

Legenda do documento do mês:

Autos de querela pelo crime de fuga (traslado).

Querelante: o Ministério Público; querelados: D. Maria da Luz Botelho Baptista e outros.

Ponta Delgada, autuação em 10 de fevereiro de 1883.

BPARPD. Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada. Processos penais, mç. 71, n.º 9077.

 

Carta de Aristides da Mota a Bruno Tavares Carreiro.

Ponta Delgada, 3 de novembro de 1880.

BPARPD. Arquivo Tavares Carreiro. Bruno Silvano Tavares Carreiro. Correspondência, cx. 7, doc. 1704.

 

Páginas iniciais de O envenenamento do Dr. Batista.

In I volume do Teatro Popular da Ilha de S. Miguel coligido por Armando Côrtes-Rodrigues (Teatro popular micaelense. Vol. I). 1946.

BPARPD. Arquivo Armando Côrtes-Rodrigues, cx. 6, doc. 111.