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Documento do mês

ÉPOCA BALNEAR

 

O solstício de Verão, que este ano ocorre no dia 21 de Junho, assinala o início da “época balnear”.

 

Ir a banhos em S. Miguel, ilha onde os recursos termais são pródigos, era sinónimo de passar uma temporada nas Caldeiras da Ribeira Grande, ou então no vale das Furnas, designadamente a partir da década de 1870, quando aí foi inaugurado o edifício dos “Banhos Novos”.

 

Os banhos de mar e o culto da vilegiatura marítima, salvo casos de prescrição médica ou ocupação socioprofissional, não conheceram expressão significativa nos Açores oitocentistas, ao contrário do sucedido no continente, onde a socialização do lazer balnear se começa a manifestar no último quartel do século XIX, como testemunha a obra de Ramalho Ortigão, Praias de Portugal[1].

 

No que à ilha de S. Miguel diz respeito, existem referências antigas a indivíduos que se recreavam no mar – desde logo nas Saudades da Terra, em que Gaspar Frutuoso nos fala do porto construído por Jorge Furtado “no cabo do biscoutal grande [de São Caetano] para mandar recolher e varar nele um barco que ali tinha para seus passatempos”[2], ou então na carta que Nicolau Maria Raposo do Amaral dirige a um seu correspondente em 1779, descrevendo a quinta de Nossa Senhora da Glória[3], junto à praia das Milícias, nos seguintes termos: “pela sua situação se faz admirável para a vista por ficar tão perto do mar que confronta com as praias, (…) agrada-me pelo divertimento da pescaria com que sou tentado, e por esta razão gosto de viver nesta vinha nos meses de verão”[4].

 

Embora nenhum destes exemplos possa ser associado à prática corrente dos banhos de mar, ambos possuem um denominador comum: os areais de São Roque e Livramento, onde hoje se encontram as praias (Milícias e Pópulo) mais populares e acessíveis do concelho de Ponta Delgada.

 

Fatores de ordem cultural e socioeconómica explicam a vulgarização tardia do hábito de ir à praia, ou de aí possuir residência de férias, que só começa a manifestar-se localmente após a II Guerra Mundial, quando,  na sequência da abertura do lanço da estrada entre São Roque e a Atalhada, documentada nalgumas fotografias da Direção das Obras Públicas da Junta Geral de Ponta Delgada[5], começamos a assistir ao início da ocupação urbana das vinhas de Nossa Senhora da Glória e São Caetano, contíguas às praias que, até então, eram basicamente um território vazio[6].

 

O aparecimento do bairro de São Caetano na década de 1950, criteriosamente localizado entre as duas praias, bem como o Plano de Urbanização da praia do Pópulo, submetido pela Câmara Municipal de Ponta Delgada à Junta Geral em 1960[7], marcam em definitivo a institucionalização social da época balnear nos arrabaldes da cidade.

 

Os novos núcleos urbanos que se desenvolveram em torno da praia do Pópulo, a primeira a ser dotada de balneários e zona de estacionamento, anunciavam não só a transformação da paisagem da orla litoral, como a mudança dos hábitos de veraneio da sociedade local que, nas décadas de 1960 e 1970, se circunscreveu ao pequeno areal emoldurado pelos pinheiros do pico da Areia, e só a partir de 1980 avançou de forma decisiva para a praia das Milícias. A melhor forma de registar estas transformações e, ao mesmo tempo, tomar consciência das que ocorreram desde aí até hoje, é, sem margem para dúvidas, a fotografia, frequentemente desprezada enquanto documento histórico.

 

Neste sentido, a coleção de diapositivos de Manuel Silveira Paiva (1928-1988), depositada na BPARPD desde 2015 e constituída por mais de três dezenas de milhar de imagens[8],  oferece um repositório de apreciável valor histórico e patrimonial, do qual foram selecionadas algumas fotografias, captadas nas décadas de 1960 e 1980, que documentam de forma despretensiosa, mas expressiva, a transição da época balnear micaelense para as águas do Atlântico.

 

[1] Ramalho Ortigão. Praias de Portugal. Guia do Banhista e Viajante. Porto: Magalhães e Moniz, 1876.

[2] Gaspar Frutuoso. Livro quarto das Saudades da Terra, vol. II. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1981, pp. 63-64.

[3] Testamento do Licenciado João Gonçalves (1568) instituindo esse morgado e arrolando os seus respetivos bens, que compreendiam a quinta de Nossa Senhora da Glória –  BPARPD, Manuscritos de Ernesto do Canto, Tombo de Testamentos da Provedoria dos Resíduos de Ponta Delgada, [MEC, Liv. 81, fl. 191 – 199].

[4] Cf. Carlos Guilherme Riley. “Castelos de areia. A praia das Milícias e o sistema defensivo da baía de Rosto de Cão”. In: Arquitectura Militar: do conhecimento histórico à função actual. Angra do Heroísmo: Instituto Açoriano de Cultura, 2005, pp. 245-264.

[5] Que aqui também podem ser visualizadas.

[6] Vd. Alain Corbin. O território do vazio. A praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

[7] Cf. BPARPD, Arquivo da Junta Geral do Distrito Autónomo de Ponta Delgada. Direção das Obras Públicas [7.15.3 e 7.15.4].

[8] Mais precisamente 32.224 diapositivos em caixilho (5x5cm), a cores, distribuídos entre 1952 e 1989, abarcando todas as ilhas do arquipélago dos Açores.