A GUERRA DA CRIMEIA (1853-1856)
na coleção cartográfica de Ernesto do Canto
A Guerra da Crimeia (1853-1856), que opôs a Rússia aos Otomanos (apoiados por uma aliança anglo-francesa) na disputa pelo domínio do Mar Negro e dos Balcãs, foi, em muitos sentidos, o primeiro conflito moderno do século XIX, tanto do ponto de vista da tecnologia militar aí empregue como da cobertura noticiosa dos seus eventos que, transmitidos pelo telégrafo, eram seguidos com grande interesse pela opinião pública na imprensa europeia.
Ernesto do Canto (1831-1900), que então cursava Filosofia em Coimbra, não passou ao lado dos ecos de uma guerra que, embora geograficamente distante, cativou as atenções da sua geração, como deixa adivinhar a abertura desta carta que lhe dirige de Torrozelo o seu patrício Filipe do Quental (1824-1892) [1] no verão de 1855: O velho general Abdail Pachá, ao general Ernesto Kimircandido e mais aderentes do exército de Cupido em operações burlescas em Coimbraculuakaia. Saúde e venturas [2].
Pela leitura da correspondência – O vosso despacho datado de 9 do corrente em frente de Sebastopol, foi-me agradável por ver que a atividade continua a ser o primeiro elemento da vossa tática de guerra [3] –, não restam dúvidas de que o conflito da Crimeia esteve bem presente ao longo dos estudos superiores de Ernesto do Canto [4] e, tendo isso em consideração, assume um sentido muito particular o facto desta magnífica estampa, com uma vista panorâmica destes importantes portos (Nikollaieff, Kherson e Odessa) da costa do Mar Negro [5], estar integrada na sua coleção de Cartografia [6].
A vista do teatro naval das operações junto à Península da Crimeia, tendo por base os levantamentos e esboços feitos pelo Capitão Mangarin, da Marinha imperial russa, foi gravada e impressa por Stannard & Dixon em Londres (16 outubro 1855), mas tudo leva a crer que Ernesto do Canto só a tenha adquirido anos depois, quando já estava casado e dispunha de outra largueza de meios [7]. A litografia em apreço, comercializada por F. Sinnett, Éditeur d’Estampes, despertou provavelmente o seu interesse por ocasião da viagem que fez a Paris, em 1867, para visitar na companhia da mulher a Exposition Universelle d’Art et d’Industrie [8].
[1] Este tio paterno (e padrinho) de Antero de Quental, futuro Lente de Medicina (1867), foi uma figura tutelar da “colónia” açoriana que então se encontrava a estudar em Coimbra, como comprova a correspondência dirigida a Francisco Maria Supico por Teófilo Braga no início do seu tirocínio universitário, da qual destacamos esta curiosa passagem – (…) No meio desta turba multa de estudantes, dá-se um fenómeno curioso: agrupam-se pelas suas simpatias locais, os da província do Minho fazem cá a sua panela, os Beirões ligam-se como valentes, os Lisboetas conhecem-se por certos requintes e trato; os Alentejanos e Algarvios também mais ou menos se isolam. É curioso este espírito regionalista que condiz com as origens da Nacionalidade portuguesa formada de (…). Cá temos também a nossa colónia Açoriana bem representada, o Dr. Filipe de Quental é o Pater potestas da Colónia, porque os estudantes que tem em sua casa são quase todos açorianos. Vivem em casa independente os Machado de Faria e Maia, formando um foco para onde convergem Antero, Filomeno da Câmara e outros (…) – BPARPD, Arquivo Teófilo Braga, cx. 184, doc. 18.
[2] Cf. BPARPD, Livraria Ernesto do Canto. Correspondência, doc. 1009.
A circunstância desta troca de cartas ocorrer nas férias do Verão, quando os estudantes estavam menos focados nos afazeres académicos, assim como a proverbial tendência de Filipe de Quental para o folguedo, ajudam a compreender o tom brincalhão das missivas e a analogia nelas estabelecida entre as aventuras do exército de Cupido e a Guerra da Crimeia. Para informações mais detalhadas sobre Filipe de Quental, vejam-se José Bruno Carreiro, Antero de Quental. Subsídios para a sua biografia. vol. I. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1948, pp. 37-39; 116-118, e Carlos Falcão Afonso, “Uma carta inédita do Doutor Filipe do Quental”. In: Insulana. Órgão do Instituto Cultural de Ponta Delgada. 63 (2007), pp. 117-132.
[3] Cf. BPARPD, Livraria Ernesto do Canto. Correspondência, doc. 1008.
[4] Em outubro de 1851 matricula-se no 1º ano dos cursos de Matemática e Filosofia, tomando grau de Bacharel em Filosofia quatro anos depois, tendo concluído a sua formatura em 25 de julho de 1856. A partir de 1853, quando eclode a Guerra da Crimeia, Ernesto do Canto tem igualmente à sua guarda os irmãos Eugénio e Filomeno, que então iniciavam os seus estudos em Coimbra, e a correspondência que lhe dirige o seu pai ao longo deste período documenta bem o cuidado e preceito que este último colocava na educação dos filhos segundos. Vd. Nuno Álvares Pereira, “Cartas do Morgado José Caetano Dias do Canto e Medeiros a seus filhos Ernesto, Eugénio e Filomeno, estudantes em Lisboa e Coimbra, 1850-1856”. In: Insulana. Órgão do Instituto Cultural de Ponta Delgada. 18-23 (1962-1967), pp. 140-151; 21-39; 80-97; 112-136; 218-239; 128-142.
[5] Dado que, pelas piores razões, as cidades portuárias aqui versadas se tornaram hoje familiares para a opinião pública, importa esclarecer que todas elas integram atualmente o território da Ucrânia e que o topónimo (russo) Nikollaieff foi substituído pelo nome (ucraniano) Mykolaiv. As restantes urbes, Kherson e Odessa, mantêm a sua designação tradicional.
[6] A coleção de Cartografia de Ernesto do Canto, que se encontra descrita no inventário da sua Livraria, doada por disposição testamentária à Biblioteca Pública de Ponta Delgada (Vd. Inventário dos Livros, Jornais, Manuscritos e Mapas do Dr. Ernesto do Canto legados à Biblioteca Pública de Ponta Delgada (Ilha de S. Miguel) e entregues por sua viúva D. Margarida Leite do Canto. Évora: Tip. Minerva Comercial, 1905, pp.751-775) é composta por 231 documentos, distribuídos por diferentes tipologias – Atlas; Mapas; Cartas e Estampas – e cronologias históricas, com uma natural incidência sobre a área do Atlântico norte e as ilhas dos Açores, como seria de esperar no espólio de um erudito que, enquanto proprietário e editor do Arquivo dos Açores (12 vols. Ponta Delgada: Typ. do Archivo dos Açores, 1878-1897), contribuiu de forma decisiva para a construção da moderna historiografia açoriana.
[7] Casou em 5 de maio de 1859 com a sua sobrinha (e herdeira do património vinculado) Margarida Leite do Canto (1842-1915), após o seu pai, morgado José Caetano Dias do Canto e Medeiros, ter obtido a necessária dispensa papal para o enlace.
[8] As inúmeras publicações então adquiridas em Paris, entre as quais merecem destaque os 10 volumes do catálogo completo da Exposição e também o da representação portuguesa – Vd. Catalogue general [de la] Exposition Universelle de 1867 à Paris. Paris: E. Dentu, Libraire-Éditeur, 1867. 10 vol.; Catalogue spécial de la section portugaise a l’exposition universelle de Paris en 1867. Paris: Librairie Administrative de Paul Dupont, 1867 –, comprovam o facto de Ernesto do Canto fazer estas viagens não tanto com propósitos de lazer, mas antes de aprendizagem.