A INSUBORDINAÇÃO DE SARAMAGO
À excepção do autógrafo de José Saramago, no seu único livro de poesia, Os Poemas Possíveis (1967), os documentos que aqui vos trazemos – fotografias, manuscrito autógrafo, dactiloscrito, artigos de jornal e uma entrevista -, parte integrante do arquivo nataliano depositado nesta biblioteca e arquivo, dão conta da participação de Saramago na FNDC-Frente Nacional para a Defesa da Cultura-, criada em 1992, por iniciativa de Natália Correia, Miguel Torga, Urbano Tavares Rodrigues, Luiz Francisco Rebello, Fernando Dacosta, entre outros. Inclusivamente, a elucidativa mensagem – «Que seja por bem…»[1] -, sugere o ambiente que então se vivia e que motivou a criação daquele movimento cultural, conforme veremos. As fotografias datam de 10 de Dezembro de 1992, Dia Internacional dos Direitos Humanos, e foram tiradas na Sala dos Passos Perdidos do Palácio de S. Bento – Assembleia da República. Quanto ao autógrafo de 1967, ele testemunha uma relação de cumplicidade entre Saramago e a escritora açoriana, durante a ditadura, tempo em que ambos escreveram para a Seara Nova – o abrigo democrático dos intelectuais daquele tempo – e onde Natália Correia chegou a ter um artigo censurado pelo regime. Todavia, estes documentos testemunham um selo de solidariedade mútua, quando, conforme declaração inédita de Fernando Dacosta, «ao sentir-se abandonada por Soares-depois de lançar, a seu pedido, a Frente Nacional para a Defesa da Cultura, como contestação à política de Cavaco Silva, Natália foi prontamente ajudada por Saramago (e pela máquina do PCP[2]) a cumprir o propósito da referida Frente, que culminou com um grande espectáculo na Aula Magna, em Lisboa”. É o próprio Fernando Dacosta que , em 1992, anuncia o evento, depois de especificar as razões que presidiram à criação da FNDC, enfatizando que «o movimento visa denunciar o tratamento dado pelo poder às coisas da cultura»[3].
Ora, a Frente Nacional para a Defesa da Cultura, «tutelada simbolicamente por Miguel Torga»[4], foi apresentada a 14 de Abril de 1992, no auditório da Sociedade Portuguesa de Autores, que , à data, tinha como Presidente um dos maiores dramaturgos do nosso país, Luiz Francisco Rebello, grande amigo de Natália Correia. A taxa do IVA aplicada aos livros, a revolta contra o então Sub-Secretário de Estado da Cultura, Sousa Lara, que excluiu o Livro de José Saramago, Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), da candidatura ao Prémio Literário Europeu[5] – alegando que o romance provocava os católicos portugueses -, o estado decadente e opressivo[6] da Cultura em Portugal, foram as razões que então presidiram à criação daquele movimento constituído por «Muitas dezenas de intelectuais, homens das artes, das ciências, historiadores, professores»[7], jornalistas, críticos literários, bibliotecários, juristas, editores e livreiros, associações diversas. O facto de o «Comunicado da Frente Nacional para a Defesa da Cultura», que aqui vos trazemos, ter sido escrito em papel com o logotipo da Sociedade Portuguesa de Autores, comprova a união dos autores contra o acto censório de Sousa Lara. Nunca terá havido em Portugal um movimento cultural tão amplo, tão determinante e tão incisivo. E sobre o mesmo, disse Saramago numa entrevista então concedida ao Público:
«Não esperava que, depois do 25 de Abril, se repetissem comportamentos desses, nessa altura institucionalizados. Embora a exclusão do meu romance Evangelho Segundo Jesus Cristo tenha também um carácter institucional, porque não foi uma medida extemporânea. É uma decisão tomada por uma instância do Governo e foi no exercício de uma autoridade governamental que a decisão foi tomada. Quanto ao meu estado de espírito: estou triste e indignado. Sinto-me também estupefacto: nos primeiros dias após a decisão governamental perguntava-me se isto estava de facto a acontecer.»[8]
Neste mês de Novembro, a Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada associa-se às celebrações que evocam o nascimento do Prémio Nobel da Literatura, José Saramago, precisamente há cem anos (1922- 2010). Para além dos documentos que vos trazemos, também organizámos uma mostra documental, constituída por alguma bibliografia activa e por alguma bibliografia passiva: nela encontramos, para além de quase todos os livros escritos pelo distinto autor português, entrevistas em jornais, revistas, ensaios e crítica literária. Sem dúvida, um convite muito apetecível para visitar-nos. Mas não só. No dia 16 de Novembro, pelas 18h00, daremos início à nossa Academia de Letras, precisamente com «A insubordinação de Saramago». Trata-se de um diálogo sobre os aspectos centrais da vida e obra do nosso Prémio Nobel, para o que contamos com a vossa indispensável participação.
Os documentos que aqui trazemos integram o acervo de Natália Correia, descrito na base de dados ARCHEEVO, acessível em https://arquivos.azores.gov.pt/details?id=1223997.
Direitos de autor do texto – ÂA/BPARPDL
[1] Esta frase, que Saramago escreve a Natália Correia, em autógrafo de 3 de Junho de 1992, parece indicar os votos do escritor, ao aderir à FNDC, e tendo em conta o que lhe sucedera.
[2] Curiosamente, em 1975, Natália Correia opusera-se frontalmente aos excessos do PCP.
[3] DACOSTA, Fernando (1992). «SEC: a indignação dos intelectuais». Público, 14 de Abril: 2-3, p.2.
[4] Jornal de Notícias (1992). «Frente Para a Defesa da Cultura contra política de Santana Lopes», 15 de Abril de 1992: 3. A carta, que Natália Correia dirige a Miguel Torga (acessível em https://arquivos.azores.gov.pt/details?id=1225294), elogia a firmeza de Saramago e pede a Torga que aceite ser o mentor do grande projecto cultural que a FNDC almeja. Em contrapartida, a poeta, admiradora confessa do autor de Bichos, lê, na abertura da apresentação da Frente, «um poema de Miguel Torga especialmente escrito para o efeito». Vide DACOSTA, Fernando (1992), Op. Cit. Inclui-se, igualmente, um documento do Arquivo Dórdio Guimarães, outro acervo documental aqui incorporado, cuja descrição pode ser consultada em https://arquivos.azores.gov.pt/details?id=1200325.
[5] Leia-se SEPÚLVEDA, Torcato (1992). «Saramago retira-se da corrida». Público (Cultura), 12 de Maio de 1992: 26. Nesse mesmo ano, a APE distinguiria o autor com o Grande Prémio Romance e Novela. Três anos antes de ser galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, Saramago será ainda galardoado com o Prémio Camões.
[6] A propósito da polémica instalada com a não atribuição do Prémio Literário Europeu a José Saramago, Clara Ferreira Alves antecipava então o exílio que o escritor viria a escolher ainda nesse ano, deixando o país e passando a viver em Lanzarote com a mulher, Pilar del Rio: «Uns refugiaram-se no exílio, interior ou não. Jorge de Sena refugiou-se bem longe…, Eduardo Lourenço recolheu a Vence…» – ALVES, Clara Ferreira (1992). Expresso (Revista) «Saramago e a decisão de Sousa Lara – “Ainda acabo por me ir embora”»,2 de Maio: 13.
[7] Diário de Notícias (1992). «Frente Cultural reforça-se contra «atentados», 15 de Abril de 1992: 5.
[8] SARAMAGO, José (1992). «É a terceira vez que sou censurado por Sousa Lara». Entrevista concedida a Torcato Sepúlveda. Público (Cultura) 10 de Maio de 1992: 40-41, p.40.