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Documento do mês

JOSÉ BRUNO TAVARES CARREIRO

no

TERREIRO DA LUTA

 

Este retrato de grupo, tirado no dia 5 de Janeiro de 1923, momentos antes do lunch oferecido aos Dr.s Luís Bettencourt e José Bruno Carreiro pela Comissão Autonómica da Madeira, documenta um ponto alto da visita dos dois “embaixadores” açorianos ao Funchal na quadra natalícia de 1922, e já fora divulgado em primeira mão na revista Açores, embora a nitidez gráfica da sua reprodução deixe hoje a desejar[1].

O Arquivo da família Tavares Carreiro, à guarda da BPARPD desde 2012, possui duas provas fotográficas deste evento, ambas captadas por M.O. Perestrelo & Sucr.es: a primeira, no Terreiro da Luta, junto ao busto de João Gonçalves Zarco[2]; a segunda, no interior do Chalet Restaurant-Esplanade, onde decorreu o almoço de homenagem aos convidados açorianos.

A visita ao Funchal foi o corolário de uma campanha em prol da “autonomia dos Distritos Insulanos” que, iniciada e liderada pela Madeira[3], encontrou um eco significativo em Ponta Delgada quando José Bruno Carreiro publicou no Correio dos Açores o célebre editorial intitulado “Se a Madeira quisesse …”[4]. Embora o tema já tenha sido abordado por investigadores açorianos e madeirenses no passado recente[5], a documentação do Arquivo Tavares Carreiro fornece-nos uma perspetiva inédita dos bastidores desta campanha autonómica, tanto no que respeita ao seu diferente acolhimento nos três distritos açorianos, como às clivagens que provocou na sociedade micaelense entre os republicanos do partido Democrático e os monárquicos do partido Regionalista.

Logo no rescaldo da Grande Guerra de 1914-1918, José Bruno Carreiro empenhou-se de forma decidida numa alteração radical do regime autonómico instituído pelo decreto-lei de 2 de março de 1895, como demonstra o excerto desta carta dirigida a Luís da Silva Ribeiro em 1919:

(…) Alargar-se o regímen da autonomia que nos deram em 1895, atribuindo-se mais largas receitas ás Juntas, seria uma calamidade. A autonomia de 95 nada mais foi do que um truc com que o Governo, alarmado, quis pôr um dique a uma imaginária corrente separatista. Fomos verdadeiramente burlados, mas, no momento, todos se julgaram muito felizes com aquela dadiva de algumas das contribuições do Estado. [6]

Se bem que se assistisse então a um estreitamento de laços entre as ilhas de S. Miguel e Terceira, simbolicamente ilustrado pelo próprio casamento de José Bruno Tavares Carreiro com Georgina Forjaz de Lacerda, criar uma plataforma de entendimento com a ilha do Faial era mais difícil, dada a resistência do distrito da Horta em abraçar a autonomia administrativa concedida aos de Ponta Delgada e Angra do Heroísmo em finais do século XIX. A carta que Manuel da Câmara, ex-Governador Civil da Horta, endereça a José Bruno Carreiro em junho de 1919 é bem exemplificativa dos escolhos que se colocavam:

Aqui nunca se organizou qualquer comissão para o estudo das bases dum novo programa de autonomia, nem me parece fácil de organizar (…). Entre motivos de vária ordem avulta o da pobreza destes rincões ocidentais, cujo deficit é coberto com os dinheiros que acodem da metrópole. (…) Qualquer outra nota mais numerosa e desenvolvida (…) não me parece necessária, atendendo à relutância de levar os faialenses a entoarem com os de S. Miguel e Terceira. A minha qualidade de micaelense inibe-me de qualquer iniciativa.[7]

Procurando encurtar distâncias entre as elites dos três distritos e construir um sentimento de identidade comum a todas as parcelas do arquipélago, José Bruno Carreiro funda a 1 de maio de 1920, em conjunto com Francisco Luís Tavares, o jornal Correio dos Açores. O novo diário matutino de Ponta Delgada fazia profissão de fé na defesa dos “interesses açorianos” acima de quaisquer obediências político-partidárias, ocupando desde cedo uma posição destacada no relançamento das aspirações autonómicas que, ao contrário do sucedido na década de 1890, caminhavam a par de uma dinâmica regionalista, cujas expressões no domínio da Pintura, Literatura, Etnografia e História lhes conferiam agora maior consistência e amplitude.

O debate que se instalou no último trimestre de 1922 em torno da composição da “embaixada” açoriana que se deslocaria ao Funchal, para assistir ao fecho das comemorações do 5.º centenário do descobrimento da Madeira, gerou uma interessante troca de correspondência entre José Bruno Carreiro e o intelectual terceirense Luís da Silva Ribeiro, que resistia aos argumentos para integrar esse grupo nos seguintes termos:

(…) V. sabe que em teoria sou autonomista dentro de certas formas, mas sabe mais que pretendo fazer acentuar a organização administrativa em bases económicas mais seguras. (…) A autonomia virá infalivelmente mas eu tenho tanto medo dela que tenho escrúpulo em a pedir. (…) Outro assunto da sua carta é a representação da Terceira no centenário. (…) Quanto à minha ida meu caro José Bruno também não sei que lhe diga. (…) Só de me ver ao pé do Coronel, do Aristides hercúleo e decidido, do Luís Bettencourt impetuoso, do Braz[8] vestido com um fraque obscenamente bem talhado e de V. podre de chic, figurino de Londres, brunido, barbeado, perfumado, eu ficaria tonto, gago e tolo de todo. Imagine que eu levava o meu regionalíssimo fato de pano da terra!. (…) Tudo esplêndido menos a minha ida, que francamente não tem pés nem cabeça, nem casaca, nem dinheiro.[9]

 José Bruno Carreiro, cuja chama autonomista ainda não estava toldada pelo ceticismo, respondeu cordialmente à escusa bem-humorada do seu amigo, mas sem deixar de fazer alguns reparos que merecem destaque:

(…) Homem de pouca fé! Como dizia aquele ilustre terceirense que aí entrevistei sobre o problema açoriano! (…) A razão principal da minha fé autonomista está na minha revolta de roubado e espoliado por uma cáfila, composta em parte de imbecis e em parte de malandros, que nos olha de alto e que só nos considera excelente matéria tributável. Você não pode deixar de sentir também esta revolta. O resto são detalhes de organização! (…) Agora, o que é indispensável é darmos o mais vigoroso apoio à iniciativa da Madeira, agarrando-a como uma verdadeira tábua de salvação. Ou agora –  ou nunca! (…) Há na Junta uma corrente que considera que, não tendo sido convidados, não nos devemos fazer representar nas festas do centenário da Madeira. O raciocínio é bertoldo[10], porque é não compreender que essa representação significa uma homenagem da nossa parte. Por isto, manobrei para a Madeira para que de lá venham convites.[11]

 A Junta Geral funchalense endereçou convites às suas congéneres açorianas, mas os problemas ocorridos em finais de novembro nas eleições administrativas para a Câmara Municipal e Junta Geral de Ponta Delgada, que despertaram grande tensão entre as fileiras da “conjunção republicana” e o recém formado partido Regionalista[12], criaram um impasse na nomeação dos representantes da Junta Geral de Ponta Delgada, ao contrário do sucedido em Angra do Heroísmo[13], e a “embaixada” micaelense ao Funchal acabou composta por José Bruno Carreiro, que viajou a título pessoal, e por Luís Bettencourt, com um mandato do partido Regionalista.

Face à cobertura noticiosa das eleições feita pelo Correio dos Açores, Francisco Luís Tavares abandonou a redação do jornal, comunicando essa decisão a José Bruno Carreiro a 30 de novembro de 1922[14]. A longa resposta que este último lhe dirigiu antes de embarcar para o Funchal, não só retrata o ambiente político local nesse conturbado período da nova “República Velha”[15], como apresenta trechos autobiográficos que ilustram o posicionamento de José Bruno Carreiro face ao jornalismo, à política e à autonomia, e, neste sentido, aqui ficam transcritos alguns excertos desse documento:

(…) Á medida que os anos vão passando sobre mim, sinto que me vou tornando grognon e rabugento com o apego a certos princípios que considero fortes e dignificantes (…) Por várias razões abandonei um rendoso emprego público, entre elas para poder falar e escrever em plena independência, sacrificando assim 8 ou 9 contos por ano. (…) Nos tempos que correm, esta moral é de tolo e de parvo, mas tem uma vantagem: dá-me alguma autoridade para falar. (…)

Embora o teu reparo venha a propósito da atitude do “Correio” nos últimos acontecimentos, não desejo deixar de me referir ao único ponto em que o “Correio” tem marcado verdadeiramente uma atitude: as reivindicações autonómicas. (…) Embrulhar o regime com a campanha autonómica é outro disparate sem pés nem cabeça. (…) Se a campanha de 92-95 nunca foi tomada como dirigida contra a monarquia, com que demónio de lógica será hoje a campanha dirigida contra a república?! (…) Mas o que não compreendo é que a essa campanha os partidos [republicanos] do regímen se não apresentem a dar hoje a sua aberta e franca solidariedade, procurando mesmo tomar nela uma posição de predomínio, como fez na Madeira o mais importante partido local – o reconstituinte. (…)

Há muito me desinteressei por completo das coisas do regímen no seu aspeto político. E se depois do 5 de outubro dizia – e dizia-o sinceramente – que era republicano, não só agora o não digo, como digo claramente que o não sou (…) Também me não declaro monárquico, porque o não sou. O meu sentir é de absoluta indiferença perante o problema político. Só não sou indiferente perante o que possa respeitar às coisas locais, à sua melhor gerência, à sua melhor e mais honesta administração. (…) Nunca te vi exteriorizar grandes entusiasmos pelo alargamento da autonomia. Entre os homens de maior evidência nos partidos republicanos aqui da terra, só observei entusiasmo pela autonomia no Augusto Cimbron e no Luís Bernardo. Porquê? Não sei, nem percebo, visto que não pode haver política mais alta para nós.  (…)

Deixei correr a pena, sem misericórdia, pelo que tem sido a minha orientação no “Correio” (neste meu “terceiro filho”, como já alguém com graça lhe chamou), numa espécie de exame de consciência, que me foi grato fazer ao fim de 30 meses de jornalismo. Mas, fazendo-o, não era para estabelecer contigo qualquer espécie de polémica, nem nunca deixei de ter presente no espírito o respeito que me merece a nossa velha amizade.[16]

 

[1] Cf. Os Açores. Revista ilustrada. Ponta Delgada. Ano I, n.º 7 (jul. 1923), p. 19.

[2] O busto em bronze, da autoria do escultor madeirense Francisco Franco, foi executado em 1914 e possui a seguinte inscrição – Ao descobridor da Madeira João Gonçalves Zarco, 1419-1919. Sita ao Terreiro da Luta (freguesia do Monte, concelho do Funchal), esta interessante peça de estatuária pública foi inaugurada a 2 de Julho de 1919, por ocasião do início das comemorações do 5.º centenário do descobrimento da Madeira (1919-1922).

[3] Vd. José Guilherme Reis Leite. “O 2º movimento autonomista açoriano e a importância da Madeira no seu desenvolvimento”. In: Actas do II Colóquio internacional de História da Madeira. Lisboa: Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1990, pp. 877-883.

[4] Cf. O Mal Insulano: Se a Madeira quisesse…. In: Correio dos Açores. Ponta Delgada. Ano 3, n.º 666 (15 ago. 1922).

 [5] Para além do estudo apontado supra na nota 3, refiram-se ainda os seguintes: Nelson Veríssimo. “O alargamento da Autonomia Insular: o contributo Açoriano no debate de 1922-23”. In: Islenha, nº 16, 1995, pp. 22-30; Carlos Cordeiro. “Se a Madeira quisesse…. Em busca de uma frente insular pró-autonomia (1921-1923)”. In: Açores e Madeira. Percursos de memória e identidade. Velas (S. Jorge): Santa Casa da Misericórdia, 2017, pp. 159-167.

[6] Carta de José Bruno Carreiro a Luís da Silva Ribeiro. Ponta Delgada, 5 jun. 1919 – BPARPD. Arquivo Tavares Carreiro, doc. 584.

[7] Carta de Manuel da Câmara a José Bruno Carreiro. Horta, 28 jun. 1919 – BPARPD. Arquivo Tavares Carreiro, doc. 10862.13.

Manuel da Câmara Velho de Melo Cabral (1869-1939) desempenhou as funções de Governador Civil da Horta (maio 1918-fevereiro 1919) no decurso da “República Nova” de Sidónio Pais.

[8] Refere-se, respetivamente, a: Coronel Francisco Afonso Chaves, Dr.s Aristides Moreira da Mota, Luís Bettencourt de Medeiros e Câmara e Henrique Braz, personalidades cujas biografias e atividade podem ser consultadas nos correspondentes verbetes da Enciclopédia Açoriana (http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/).

[9] Carta de Luís da Silva Ribeiro a José Bruno Carreiro. Angra do Heroísmo, 12 nov. 1922 – BPARPD. Arquivo Tavares Carreiro, doc. 944.

[10] Termo de uso pouco corrente, que significa palerma.

[11] Carta (rascunho) de José Bruno Carreiro a Luís da Silva Ribeiro. Ponta Delgada, 22 nov. 1922 – BPARPD. Arquivo Tavares Carreiro, doc. 1128.

[12] Que Francisco Luís Tavares considerava ser “a camouflage do regionalismo indígena [no] seu aspeto dúplice de monarquismo e de pretensa sentinela vigilante dos interesses locais” – Cf. As Eleições Administrativas. In: Correio dos Açores. Ponta Delgada. Ano 3, n.º 728 (28 out. 1922).

[13] Cuja Junta Geral deliberou enviar o seu Secretário, Frederico Augusto Lopes da Silva. Vd. José Guilherme Reis Leite. “O 2º movimento autonomista açoriano e a importância da Madeira no seu desenvolvimento”. In: Actas do II Colóquio internacional de História da Madeira. Lisboa: Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1990, pp. 877-883.

[14] Carta de Francisco Luís Tavares a José Bruno Carreiro. Ponta Delgada, 30 nov. 1922 – BPARPD. Arquivo Tavares Carreiro, doc. 4068.

[15] Vd. Luís Menezes. As eleições legislativas de 1921 e 1925 no arquipélago dos Açores. [Angra do Heroísmo]: Secretaria Regional da Educação e Cultura/Direção Regional dos Assuntos Culturais, 1992.

[16] Carta (rascunho) de José Bruno Carreiro a Francisco Luís Tavares. Ponta Delgada, 2 dez. 1922. – BPARPD. Arquivo Tavares Carreiro, doc. 4070.

Dada a extensão deste documento (29 fl.s), não é viável a sua inclusão em suporte digital, na brochura ilustrativa que integra o presente Documento do mês, pelo que se inserem apenas a primeira e a última fl.s.