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Documento do mês

UM VELHO LIBERAL NOS AÇORES

O Desembargador Vicente José Ferreira Cardoso da Costa

 

Em 1822 as Cortes Representativas e Constituintes da Nação Portuguesa, formadas na sequência da Revolução Liberal de 1820, promoveram a elaboração do Código Civil, tendo para esse efeito[1] sugerido a atribuição de um “prémio para quem (…) apresentar o melhor projeto de código civil [2]. O Desembargador Vicente José Ferreira Cardoso da Costa, apartado dessas atividades parlamentares e conhecido nos círculos forenses como “Jurista Filósofo”, apressou-se a publicar dois trabalhos sobre esse tópico[3], designadamente a Explicação da Árvore que representa o Código Civil Português, folheto que vem acompanhado pela interessante estampa reproduzida neste Documento do Mês.

Depois dos sobressaltos políticos e legislativos que marcaram o Vintismo, o projeto do Código Civil só viria a ser retomado pelo decreto régio de 10 de Dezembro de 1845, o qual mereceu do então Juiz da Relação dos Açores, António de Oliveira Amaral Machado, uma reflexão sobre a obra de Cardoso da Costa neste domínio[4] que, assim, pode ser considerado como um predecessor de António Luís de Seabra (1798- 1895), pai do primeiro Código Civil português, aprovado e impresso em 1867.

Nascido na cidade de Baía em 1765, Cardoso da Costa tomou grau de Doutor em Leis pela Universidade de Coimbra em 1785, onde regeu a cadeira de Direito Enfitêutico e aprofundou os conhecimentos sobre morgadios e sucessão nos bens da Coroa. Provido no lugar de Desembargador na Relação do Porto em 1799, cidade natal de seu pai, iniciou nesse mesmo ano a publicação seriada de um ambicioso trabalho[5], que viria a ser interrompido pelas invasões francesas, causadoras de perturbações políticas em que se viu envolvido conjuntamente com outras figuras, reputadas de pedreiros-livres, e que levaram à prisão desse grupo nos calabouços do Forte de São Julião da Barra, de onde seriam deportados para os Açores em setembro de 1810[6].

O ilustre naipe de deportados, entre os quais se encontravam Domingos Vandelli e Jácome Ratton, foi acolhido com azedume na cidade de Angra e um poema anónimo, atribuído ao pai de Almeida Garrett, descrevia o Desembargador Cardoso da Costa como figura de proa da turba jacobinaMas quem leva o troféu de tal matula / É Vicente, doutor chefe da seita.[7] O Doutor Vicente, como ficou conhecido na gíria local,  seria transferido no início de 1813 para Ponta Delgada, onde prestou conselhos jurídicos a uma rica morgada da terra que enviuvara recentemente, D. Helena Vitória Machado de Faria e Maia, com quem viria a contrair matrimónio em 1815 no oratório da sua casa da Arquinha.[8]

Respaldado pelo conforto patrimonial, Cardoso da Costa fez-se ouvir nos principais títulos da imprensa Liberal – O Correio Brasiliense e O Investigador Português em Inglaterra – procurando apagar a imagem de jacobino hostil à Coroa e apregoando a injustiça da sua prisão pelo Governo da Regência. Recebeu com prudência as notícias sobre a Revolução de 1820, aconselhando o Capitão-General, Francisco António de Araújo, a não dar pretextos honrados aos outros para satisfazerem vistas sobre os Açores, de que muitas vezes se tem falado em papéis públicos[9], mas continuou a ser encarado como conspirador revolucionário pelo Capitão-General seguinte, Francisco de Borja Garção Stockler, que numa carta endereçada em janeiro de 1821 ao Conde dos Arcos no Rio de Janeiro, afirma ter conhecimento de que a Junta Suprema do Governo de Portugal tinha vistas de revolucionar estas Ilhas (…) e que a intenção dessa Sociedade de Pedreiros Livres era que o novo Governo destas Ilhas ficasse a cargo do supra mencionado Doutor Vicente José Ferreira.[10]

O Doutor Vicente não pretendia assumir qualquer protagonismo nos Açores, mantendo-se marginal ao movimento que a 1 de março de 1821 marcou a adesão da ilha de S. Miguel à causa revolucionária[11], já que a sua apetência pela intervenção política apontava para um patamar mais ambicioso, o de substituir o Conde de Palmela como procurador dos interesses da Coroa nas Cortes Constituintes em Lisboa, conforme atesta um Memorial enviado ao Presidente da Regência do Reino a 12 de março de 1821[12] . Declinados esses serviços e iniciados os trabalhos das Cortes Constituintes, a vaidade do Doutor Vicente impediu-o de ficar inerte e decide empreender a publicação de um jornal, intitulado O Velho Liberal[13], em cuja nota de abertura deixa bem clara a sua simpatia pelo modelo político da monarquia parlamentar britânica.

Trata-se de um jornal que merece destaque na história da imprensa periódica açoriana, pois embora impresso em Lisboa, na Tipografia de António Galhardo, foi em grande parte redigido a partir de Ponta Delgada por Cardoso da Costa, que depois endereçava os textos manuscritos ao seu enteado, José Inácio Machado de Faria e Maia, na capital do reino. O jornal, de periodicidade irregular, só retomou a publicação em 1826, uma vez outorgada a Carta Constitucional, e as ambições políticas do Doutor Vicente esmoreceram progressivamente à medida que se avolumavam as tensões que conduziram à Guerra Civil em 1828.

No primeiro trimestre de 1832, já na fase final do conflito, quando a elite local aguardava o desembarque do Estado-maior do Exército Libertador na ilha de S. Miguel, o Livro de registo da Alfândega de Ponta Delgada assinala uma carga proveniente do Havre, com loiças, porcelana e champanhe, dirigida a Cardoso da Costa[14], que assim se preparava para hospedar na casa da Arquinha os dignatários que acompanhavam D. Pedro IV, quiçá até o próprio monarca. Tal não veio a suceder, sinal de que o Doutor Vicente não integrava o núcleo duro dos “chamorros”[15], mas o testemunho deixado por D. José Mascarenhas Barreto nas suas Memórias ilustra bem como o velho Liberal, falecido dois anos depois[16], foi uma figura prestigiada entre os homens do seu tempo:

O meu General foi recebido pelo bem conhecido Dr. Vicente, contemporâneo dos nossos pais e avós, e que estava por isso relacionado com a primeira aristocracia de Lisboa (…) e ele, como guapo[17] que era, hospedou em sua casa os Condes de Vila Flor, Marquês de Ponte de Lima, Conde de Ficalho e irmãos, e muitos outros fidalgos (…). Durante o tempo que ali estiveram, e que não foi pouco, o guapo doutor tinha mesa franca.[18]

 

 

[1] A iniciativa coube a José Joaquim Rodrigues de Bastos (1777-1862), deputado eleito pela província do Minho. Vd. Zília Osório de Castro (Direção de). Dicionário do Vintismo e do primeiro Cartismo (1821-1823 e 1826-1828). Lisboa: Assembleia da República, vol. I, pp. 222-225.

[2] Cf. Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa. N.º 47 (29 mar. 1822), p. 665.

[3] Que é o Código Civil?. Lisboa: Typographia de António Galhardo, 1822, e Explicação da Árvore que representa o Código Civil Português. Lisboa: Typographia de António Galhardo, 1822.

[4] Vd. A Gazeta dos Tribunais. Lisboa, n.º 701 (18 abr. 1846): O Decreto de 10 de Dezembro de 1845. O jurisconsulto português Vicente José Ferreira Cardoso . O seu prospecto do Código Civil, pp. 2826-2827.

[5] Compilação systematica das Leis Extravagantes de Portugal. Oferecida ao Sereníssimo Senhor D. João, Príncipe do Brasil. Lisboa: Oficina Régia, 1799.

[6] A ordem de prisão, dada pelo Intendente-geral da Polícia na noite de 10 para 11 de setembro, ficou conhecida na historiografia pelo nome de Setembrizada. Veja-se sobre este assunto a obra “clássica” de Francisco Ataíde Machado Faria e Maia, Os deportados d’Amazona – monografia histórica, 1810-1826. Ponta Delgada: Oficina de Artes Gráficas, 1918; e, muito particularmente, a sua segunda edição, publicada sob um título diferente: Um deportado da “Amazonas” – monografia histórica – época Liberal nos Açores, 1810-1834. Ponta Delgada: Tipografia de Fernando Alcântara, 1931.

[7] Cf. Diário dos Açores, n.º 950 (26 set. 1886): Notas Chronologicas (assinadas por Francisco Maria Supico).

[8] Casaram a 27 de maio (BPARPD. PRQ. Ponta Delgada. Paróquia de São Sebastião [Matriz]). Registo de casamentos, lv. n.º 12, fl. 182v.º).

[9] Cf. Notas Críticas do Dr. Vicente José Ferreira Cardoso da Costa a huma carta attribuida a S. Exª General Stockler para o Illmo. e Exmo. Sr. Conde dos Arcos datada de 2 de Janeiro de 1821 as quaes fazem duvidar o dito doutor que seja de S. Exª semelhante escrito. Lisboa: Typographia de António Galhardo, 1822, p. 45.

[10] Cf. Ibid, p. 8

[11] Vd. Aires Jácome Correia. “História Documental da Revolução de 1821 na ilha de S. Miguel”. In: Revista Micaelense, ano IV, 1921, pp. 907-1000.

[12] Vd. Francisco Ataíde Machado Faria e Maia. Ob. cit., pp. 116-119.

[13] O Velho Liberal. Lisboa: Tipografia de António Galhardo, 1821-1826. A série completa deste periódico (compreendendo a reimpressão dos primeiros números publicados em 1821-22) é composta por 16 números e 6 suplementos, dados à estampa entre Agosto e Outubro de 1826, aos quais se deve acrescentar uma Introdução e um Índice final que, no seu todo, forma um impressionante volume de XXXII + 818 pp.

[14] BPARPD. Arquivo da Alfândega de Ponta Delgada, lv. 795, fl. 131v.º-132 e 161v.º-162.

[15] Designação pela qual eram então conhecidos os dirigentes políticos mais chegados a D. Pedro.

[16] Faleceu a 15 ago. 1834 (BPARPD. PRQ. Ponta Delgada. Paróquia de São Sebastião [Matriz]. Registo de óbitos, lv. n.º 11, fl. 177v.º).

[17] Expressão caída em desuso na linguagem corrente, sinónimo de “elegante” e “garboso”.

[18] Cf. Memórias do Marquês de Fronteira e d’Alorna. 2ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, vols. III-IV, p. 223.