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Documento do mês | março

Alvará do Ex.mo Prefeito d’esta Província que proíbe o trânsito d’homens

que a título de romeiros costumam correr as povoações d’esta Ilha[1]

 

O Prefeito da Província Oriental dos Açores tendo sido informado que em certo e determinado tempo do ano se costumam reunir grande quantidade de homens armados que com o título de romeiros correm as povoações de toda esta Ilha, resultando d’este tumultuário ajuntamento abusos que perturbam a tranquilidade e ultimamente se perpetuaram delitos contra a Religião, contra o Trono da Rainha Fidelíssima e contra a Carta Constitucional[2], cujos delitos muito cumpre evitar para o futuro , tenho determinado proibir como pelo presente Alvará proíbo d’ora em diante semelhantes peregrinações de cuja pia instituição na sua origem se tem tão escandalosamente abusado. Portanto ordeno que cada um dos Provedores dos Concelhos d’esta Província fazendo público por Editais esta minha determinação dê as convenientes ordens afim de que ela seja inteiramente cumprida, não consentindo que homem algum em hábito de peregrino transite pelo seu distrito sem autorização d’esta Prefeitura, e no caso de que algum seja encontrado será imediatamente preso formando-lhe o respetivo provedor auto de desobediência com a cópia deste meu alvará, e o remeterá com ele à competente Autoridade Judicial. Dado em Ponta Delgada aos 30 de maio de 1835.

 

O presente diploma é publicado no rescaldo da guerra civil portuguesa (1832 – 1834), um ano após o triunfo liberal, num Reino ainda dividido entre Miguelistas, de tendência mais conservadora, e Cartistas, liberais constitucionalistas. Como é próprio dos períodos de transição de regime[3], os tempos que se seguiram foram conturbados, com atos de guerrilha levados a cabo pelos vencidos, numa tentativa de desestabilizar a nova ordem política[4]. Pelo uso da expressão delitos (…) contra o Trono da Rainha Fidelíssima e contra a Carta Constitucional, podemos supor que os Miguelistas micaelenses aproveitavam esta manifestação religiosa para provocar distúrbios em diversas zonas da ilha.

Este alvará não terá cumprido inteiramente os seus fins. Quatro anos depois, a 8 de março de 1839, uma circular da Administração Geral do Distrito reforça a necessidade de controlar as peregrinações tumultuárias que se costumam fazer nesta ilha em tempo de quaresma (…) para que não continue a abusar-se com escândalo da Religião do Estado, e perturbação de tranquilidade pública, de atos que na sua origem foram somente instituídos para o exercício da devoção dos Fiéis (…).[5]

E, ainda a propósito da deturpação dos fins das romagens quaresmais, uma pequena notícia sobre os romeiros micaelenses, da autoria de Joaquim Cândido Abranches, publicada em 1883, refere:

É de tempos muito remotos o costume dos povos das aldeias desta ilha, visitarem as “casinhas de Nossa Senhora”, durante o tempo da quaresma.

A devoção pouco ou nada impera n’este costume, sendo hoje mais um passatempo de que um ato de verdadeira crença.[6]

 

A tradição micaelense e o Regulamento dos romeiros enraízam esta demonstração de fé no terramoto de Vila Franca do Campo, ocorrido no distante ano de 1522, na noite de 21 para 22 de outubro, ou na crise vulcânica de 1563. No entanto, a crónica frutuosiana, redigida sobretudo na década de  80 do século XVI[7], embora indique algumas romarias, não refere explicitamente romagens “às casas de Nossa Senhora”.

Na sessão comemorativa dos 500 anos das romarias quaresmais, realizada em outubro de 2022, Susana Goulart Costa aponta o 2º quartel do século XVII como a data provável para a sua origem[8], com base numa referência explícita que se encontra no capítulo 35º do manuscrito Princípios, criação e progresso da Congregação Eremítica dos padres irmãos do vale das Furnas da ilha de São Miguel, escravos eremitas de Nossa Senhora da Consolação que depois com a imagem da mesma Senhora, por causa do fogo, vieram habitar em vale de Cabaços, vale da Piedade, na ermida de Nossa Senhora da Conceição, na costa da dita ilha, junto ao porto da vila de Água de Pau[9]:

E assim os moradores de toda a Ilha se reformaram de vidas cada qual em seu estado, e além das secretas, ficaram gostando das penitências públicas que continuadamente faziam em visitar de dia e de noite, e muitos assim de um como de outro sexo, a pé descalço as casas de Nossa Senhora que na Ilha são de 60 para 70, e não pouco trabalhosas de correr.

Na margem destas linhas, com outra caligrafia, em jeito de glosa, alguém escreveu:

Origem da devoção que têm os moradores desta ilha em visitar as Casas de Nossa Senhora.

A autoria da narrativa é atribuída ao padre Manuel da Purificação, Ministro da Congregação até ao ano 1678, data da sua morte[10]. A mesma foi reformulada e passada a limpo pelo irmão António da Assunção (António Mendes Arouca na vida civil), que ingressou na Recoleta de Vale de Cabaços em 1664, após enviuvar, e faleceu no hospital da Misericórdia em 1680[11].

Ao que parece, frei Agostinho Monte Alverne terá consultado o manuscrito supracitado pois na sua crónica, redigida nos últimos anos do século XVII, quando se ocupa da Recoleta da Caloura, transcreve, quase ipsis verbis, a mesma passagem:

Vivendo já quietos em vale de Cabaços, entrado o ano de 1635, não esqueciam o incêndio das Furnas e como Deus castigara a ilha, por grandes pecados, querendo penitência de seus moradores, que, reformando as vidas, de dia e noite a faziam, correndo as casas de Nossa Senhora, da ilha, a pé e descalços, que naquele tempo eram 60 (…)[12].

Segundo Diogo Barbosa Machado[13], o citado António da Assunção / António Mendes Arouca é autor do título Peregrinação que costumam fazer os moradores da ilha de São Miguel visitando as igrejas de Nossa Senhora, manuscrito que se encontrava, segundo a mesma fonte, no Colégio dos Jesuítas de Ponta Delgada e cujo paradeiro, infelizmente, hoje se desconhece. Tal como os restantes livros que compunham a biblioteca deste Colégio, terá sido levado para Lisboa após a extinção da Companhia de Jesus no ano de 1760. Este manuscrito deveria certamente conter mais algumas informações sobre a origem das romarias quaresmais na ilha de São Miguel.

O certo é que a erupção vulcânica ocorrida nas Furnas em 1630 provocou grande consternação e um enorme pavor em toda a ilha de São Miguel. Nos livros de Registo de óbitos e de batismos da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, Lagoa, o cura Pedro da Ponte deixa uma pequena nota e uma notícia sobre os efeitos desta erupção, das quais destacamos dois extratos:

Estas pedras que caíram no mar e cinza que choveu por muitas partes desta ilha tudo saía do lugar das Furnas e nesta vila da Lagoa caiu tanta cinza que atolavam pelas ruas até quase meia perna entre o pé e o joelho[14].

(…) A quinta – feira cinco do mês nasceu o dia mui turvo e escuro mas às onze horas e meia até à uma hora segundo disseram as pessoas que moram onde há relógio, escureceu o dia de tal sorte que não havia quem se visse como se fora a mais escura noite de inverno não havia quem enxergasse nada sem candeia (…)[15].

 

 

[1] Cf. BPARPD. Administração do Concelho de Ponta Delgada, Registo de alvarás e ofícios de ordens da Prefeitura d’esta a Província Oriental (1833 – 1858), livro n.º 615, fl. 22 v.-23.

[2] Sublinhado nosso assim como os seguintes.

[3] Veja-se o ocorrido, recentemente, nos EUA e no Brasil, com o assalto aos símbolos de governo dos respetivos países num momento de transição política.

[4] Entre 1832 e 1835 deram entrada no tribunal de 1ª instância de Ponta Delgada 8 processos crime de lesa majestade, um dos quais (…), envolvendo, no total, 54 suspeitos ou indiciados. Cf. Susana Serpa Silva, Criminalidade e justiça na comarca de Ponta Delgada: uma abordagem com base nos processos penais, 1830 – 1834. Ponta Delgada, Instituto Cultural, 2003. P. 113.

[5] BPARPD. ACPDL, Correspondência recebida, 1839, pasta n.º 6, n.º 235.

[6] Cf. Joaquim Cândido Abranches. Os romeiros micaelenses. Novo almanaque de lembranças luso – brasileiro para o ano de 1884. Lisboa: Lallemant Fréres. A. 34, 1883. P. 195.

[7] Segundo Rodrigo Rodrigues, terá sido entre 1586 e 1590 que Gaspar Frutuoso, provavelmente nascido no ano de 1522, se terá dedicado com mais afinco à redação e aperfeiçoamento da crónica Saudades da Terra.

[8] A mesma linha de pensamento é defendida por Carmen Goujon.

Cf. https://www.tradicoes-acorianas.com/1650-00-00/

[9] Cf. BPARPD. Manuscritos Ernesto do Canto, n.º 44, f. 151 v.

Este manuscrito foi comprado por Ernesto do Canto a um indivíduo da Lagoa pelo preço de 11$200 réis. Geralmente conhecido unicamente por Crónica dos Eremitas das Furnas, descreve a história daquela Congregação desde a sua vinda para São Miguel, em 1614, até ao ano de 1789. Esta irmandade de religiosos e leigos esteve instalada nas Furnas até à noite de 2 de setembro de 1630, data da erupção do vulcão da lagoa Seca das Furnas, altura em que os irmãos se refugiram na Ribeirinha, lugar da Ribeira Grande, na casa de D. Francisco Manuel de Melo. Em maio de 1632, na impossibilidade de voltarem para as Furnas, recolheram-se na ermida de Nossa Senhora da Conceição, Caloura, Água de Pau, por ordem do Bispo dos Açores, para reformar e reedificar a sua congregação.

Transcrito por António de Albuquerque Jácome Correia, com revisão de seu filho Luís Miguel Arruda Jácome Correia, proprietários do Convento da Caloura, é editado pela Câmara Municipal da Lagoa em 2010.

[10] Cf. Capítulo 62º da morte do padre Ministro Manuel da Purificação, última pessoa da Congregação do vale das Furnas, f. 185 v.-186, no original.

[11] A propósito do seu falecimento é referido no capítulo 64º, a f. 186v. do mesmo manuscrito: (…) um homem de tão grande talento de letras, dos maiores advogados que havia na Corte e cidade de Lisboa, deixou seus filhos e netos e todas as delícias e regalos daquela Corte e se veio vestir de um pedaço de saragoça, com um saco às costas, de eira em eira, pedindo esmola e servindo a casa como se não fora o que era e nos exercícios da casa sempre foi o mais frequente, acrescentando outras muitas asperezas, mas não há que admirar que tudo pode o amor de Deus. E assim ainda teve o defeito de morrer fora da sua casa, foi engano e miséria da natureza que nem por isso lhe deixa a casa de estar muito obrigada.

[12] Frei Agostinho de Monte Alverne – Crónicas da Província de São João Evangelista das ilhas dos Açores. Ponta Delgada: Instituto Cultural, 1961. Vol. II, p. 374.

[13] Cf. António Mendes Arouca. In Diogo Barbosa Machado – Biblioteca Lusitana. Lisboa: na Oficina de António Isidoro da Fonseca, 1741. Vol. I, p. 328.

[14] Cf. BPARPD. Paróquia de Rosário (Lagoa), Registo de óbitos (1594 – 1677), f. 27 v. Disponível em:

http://culturacores.azores.gov.pt/biblioteca_digital/SMG-LG-ROSARIO-O-1594-1677/SMG-LG-ROSARIO-O-1594-1677_item1/index.html?page=60

[15] Cf. BPARPD. Paróquia de Rosário (Lagoa), Registo de batismos (1626 – 1663), f. 15. Disponível em:

http://culturacores.azores.gov.pt/biblioteca_digital/SMG-LG-ROSARIO-B-1626-1663/SMG-LG-ROSARIO-B-1626-1663_item1/index.html?page=27