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NATÁLIA CORREIA E MÁRIO CESARINY AMIZADE E CUMPLICIDADE POÉTICA

No ano em que celebramos o centenário do nascimento destes dois nomes maiores da Literatura Portuguesa, apresentamos três documentos que testemunham a sólida e duradoura amizade e cumplicidade poética entre Mário Cesariny (1923-2006) e Natália Correia (1923-1993): uma fotografia da década de sessenta (NC 01-224-2), onde é visível a relação fraternal entre ambos, e duas cartas, enviadas pelo poeta-pintor à autora açoriana, datadas de 15 de Julho de 1970 e de 3 de Outubro de 1973 (NC 905A e NC 910).

Na primeira carta, Cesariny refere-se à exposição de pintura dum grande amigo de ambos, Cruzeiro Seixas (1920-2020), também poeta e pintor, que teve lugar na galeria S. Mamede. Como Natália não pode estar presente, Mário Cesariny enviou-lhe o catálogo da referida exposição, para a qual escreveu o texto de apresentação. Nesta carta, percebe-se a independência do autor em relação ao Surrealismo, apesar da afinidade para com os ideais daquela corrente, sentimento partilhado pela autora de O Surrealismo na Poesia Portuguesa[1]. Como esta carta foi escrita no ano em que Natália Correia e Mário Cesariny foram condenados pelo Tribunal Plenário, devido à publicação da Antologia Portuguesa Erótica e Satírica[2], o poeta comenta a condenação de ambos a uma pena, suspensa por três anos.

A segunda carta data de 1973, ano em que Natália, depois de abandonar a editora Estúdios Côr, foi nomeada diretora literária da Editora Arcádia, embora, no ano seguinte, tenha sido expulsa pelo proprietário da mesma, Licínio Ribeiro. Ora, esta carta é reveladora de alguma má relação existente entre a directora literária, o editor e os autores, uma vez que a editora se recusara a cumprir a decisão da poeta, que dera indicações para a assinatura do contrato de tradução do livro de João Francisco Aranda, amigo do poeta-pintor, previamente à assinatura do contrato com Aranda. Como podemos verificar, tal situação deixou Cesariny deveras incomodado, tendo decidido não voltar à Arcádia. Na realidade, em 1977, Natália ainda viveria um litígio com a editora, conforme testemunha carta da mesma para a autora, nesse ano[3].

Cesariny, introdutor do Surrealismo em Portugal, conheceu Breton, em Paris, no ano de 1947, tendo criado o Grupo Surrealista de Lisboa, todavia, após divergências com o grupo, fundou Os Surrealistas que, entre outros, integrava Cruzeiro Seixas. A primeira exposição teve lugar em 1949. Mas, o poeta-pintor já anteriormente teria conhecido Natália Correia, porque ambos integraram o MUD-Movimento da Unidade Democrática, fundado em 1945, e ambos publicavam e reuniam-se em torno da editora Contraponto, criada por Luiz Pacheco em 1950. Ambos partilharam as ações pró-democráticas durante a ditadura e foram vigiados pela P.I.D.E., que censurou e proibiu a circulação de oito livros de Natália e um de Cesariny.

Em 1969, aquando duma exposição de Mário Cesariny na Galeria S. Mamede, a poeta escreveu uma apreciação crítica à mesma, que publicou na revista Notícia[4], e onde afirma:

O que impressiona nesta exposição de Cesariny é o gesto poético que as telas não logram conter. Uma pintura que não é feita para estar no espaço que, à primeira vista lhe compete, que sai dela própria, cujas sugestões se propagam em cadeia num jogo perigosíssimo para quantos subentendem a pintura como a arte tranquilizante da contemplação. (CORREIA, 1969: 79)

Em 1977, Natália Correia participou com um texto numa obra[5] sobre o seu amigo poeta e pintor.

Em suma, estes documentos permitem-nos contextualizar a amizade e a cumplicidade vivida entre ambos ao longo de quase meio século.

 

Direitos de autor do texto – ÂA/BPARPDL

 

 

[1] CORREIA, Natália (1973). O Surrealismo na Poesia Portuguesa (Org., Pref., Notas, Natália Correia). Mem Martins: Europa-América (2.ª ed. 2002, ed. Frenesi), 418 p.

[2] CORREIA, Natália (1965). Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica: dos cancioneiros medievais à actualidade. Sel., Pref., Notas, Natália Correia. Lisboa: Antígona (2.ª ed., 1999), 496 p.

Natália Correia, editora da antologia, Cesariny, Ary dos Santos, Luiz Pacheco, Melo e Castro, autores, entre outos, são levados à barra do 4.º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, onde decorreu o Processo n.º 90/1966, hoje arquivado na Torre do Tombo: a poeta foi acusada do crime de abuso de liberdade de imprensa, pela participação, coordenação e edição daquela antologia, considerada ofensiva para a moral pública. O processo durou quatro anos. Todos os arguidos, à exceção de Marques Esteves, então absolvido, foram condenados pelo Tribunal a penas de prisão entre os 45 e 90 dias, substituídas por penas de multa. As penas de Natália Correia e Mário Cesariny foram suspensas pelo espaço de três anos. Para o julgamento, Natália escreveu o conhecido poema «A Defesa do Poeta» que, no entanto, aconselhada pelo advogado, não chegou a ler.

[3] BPARPD. Arquivo Natália Correia, cx. 8, doc. 1146. Descrição disponível em: https://arquivos.azores.gov.pt/details?id=1224459.

[4] CORREIA, Natália (1969). «Zoom», «Cesariny e o enfarte”. Revista Notícia, 14 de Junho: 79.

[5]CORREIA, Natália (1923-1993). Leal, Raúl (1886-1964) Freitas, Lima de (1927-1998) (1977). Mário Cesariny.Lisboa: Sec. de Estado da Cultura.